SOMOS TODOS DE CHULA VISTA
Conversa de Jerome Rothenberg com Charles Bernstein, Cecilia Vicuña, Régis Bonvicino e Marjorie Perloff
Poeta, tradutor e ensaísta, Jerome Rothenberg nasceu, em 1931, em Nova Iorque. É o criador, na pós-modernidade, do que se denomina hoje de “etnopoesia” – linha de trabalho que incorpora, emprestando-lhe o mesmo peso das poéticas ocidentais modernas de vanguarda, cânticos, lendas e narrativas indígenas norte-americanas e de outras nacionalidades bem como outras manifestações primitivas, explorando, por exemplo, fontes ancestrais do mundo dos judeus, ciganos, ladrões e loucos. Keneth Rexroth assim se manifestou sobre o conjunto do trabalho de Rothenberg: “É um dos que, verdadeiramente, reconectou a poesia norte-americana com a literatura moderna internacional, resgatando, inclusive, suas raízes suspeitas e insuspeitas”. Robert Duncan falava dele como “o dançarino das novas múltiplas identidades da linguagem”.
Rothenberg publicou mais de 70 livros de poesia. É o co-editor, com Pierre Joris, da pioneira antologia de -poesia mundial: Poems for the Millennium (dois vo-lu-mes de cerca de 1000 páginas, cada um), pela The University of California Press, em 1995 e 1998. Rothenberg estreou no final dos anos 1950, época em que surgiram vários agrupamentos mundiais que possuíam,- em co-mum, o desejo de reexploração do legado das vanguardas européias e das vanguardas locais do início do século xx e o desejo de repensar, na verdade, a idéia de “vanguarda”: Black Mountain e o seu verso projetivo, verso como “campo aberto”, de Creeley, Olson e Duncan, os Beats, a Escola de Nova Iorque, a poesia concreta, de Eugen Gominger e dos brasileiros, com a proclamação do fim do ciclo histórico do verso, o Living Theather, do qual, aliás, Jerome foi parceiro, e tantos outros. Rothenberg é tradutor de Kurt Shwitters, Eugen Gomringer, Federico García Lorca, Vitezlav Nezval, Pablo Picasso etc.
Penso que não há no Brasil autor, no século xx, que tenha percurso como o de Rothenberg, que buscou fundir estruturas poéticas indígenas de seu país e de outros à poesia Dadá e à poesia moderna de William Carlos Williams, Gertrude Stein e Ezra Pound (aliás, Jerome tem muito de Pound em seu modo de operar a literatura). Aqui, no Brasil, tais procedimentos foram intentados, com outro pano de fundo, pelos poetas coloniais, como Gregório de Mattos, e, depois, por românticos, como Gonçalves Dias e Sousândrade. Leia-se a seguinte estrofe de O Inferno de Wall Sttreet: – Que stentor! que pancadaria / Por Phallus, Milita! Urubu, / Pará-engenheiro; / Newyorkeiro./ Robber-índio… oremus tatu!” A questão indigenista foi explorada, digamos, mais temática do que estruturalmente pelos modernistas, que reagiam em prol de um industrialismo moderno contra um certo Brasil “índio”, estereotipado. Mencione-se, sobretudo, o Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade e o seu “Tupi or not tupi that is the question”, e o Macunaíma, de Mário de Andrade. Rothenberg estabelece uma analogia entre as poéticas indígenas e a experiência dadaísta e outras experiências de poesia sonora das vanguardas do início do século xx, como o zaum russo.
Intitulei esta conversa a cinco vozes de “Somos todos de Chula Vista” e consultei Jerome, solicitando-lhe concordância. Chula é uma espécie de dança de música popular portuguesa ancestral. É também a palavra que designa uma espécie de cacto. Além de, chulo, substantivo masculino, querer dizer grosseiro, rude, vulgar, baixo… Rothenberg me respondeu: “É ótima, a expressão, para o título. Em espanhol, Chula significa algo como despreocupado ou alegre, velhaco ou maroto. Como creditei David Antin como o autor da frase, em resposta à pergunta de Vicuña, parece-me um título bem humorado, maroto, que funciona muito bem”.
Régis Bonvicino
ENTREVISTA
Charles Bernstein: Os diálogos poéticos transnacionais (imagi-nários ou reais), tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, têm acon-tecido mais freqüentemente entre leste e oeste do que entre norte e sul. Você poderia falar sobre sua percepção desta dinâmica e se vê alguma possibilidade de mudança?
Jerome Rothenberg: Para “nós”, em geral, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, uma visão mais superficial revela a Europa e suas línguas e culturas como referências obrigatórias, sobretudo para nossa poesia inicial. Nos Estados Unidos, a Inglaterra foi tanto a origem da língua quanto o poder contra o qual nossas rebeliões culturais foram feitas. Creio que tal raciocínio valha para as atitudes do Brasil em relação a Portugal. De qualquer forma, a meu ver, teria sido essa a primeira dinâmica leste-oeste – o novo mundo se formando com base no velho, no início, mas com este intercâmbio progressivamente mudando de direção – as Américas se libertando dos velhos poderes da Europa e por seu turno começando a influenciá-los.
A segunda dinâmica leste-oeste, na minha opinião, está relacionada à predominância da França (e num grau menor de outros países europeus) no projeto modernista inicial, um impacto inevitável sobre os poetas nas duas (ou três) Américas. Na área de intercâmbio Estados Unidos-França, sobre a qual posso falar com mais facilidade, devemos notar dois aspectos. Nas primeiras décadas do século xx, o modernismo europeu (francês, alemão, italiano) representou os limites da inovação formal, sentidos de modo mais forte (e mais combatidos do que o contrário) nas artes visuais, mas os poetas americanos que eram receptivos a experiências (Williams, Pound, Stein, Cummings) também se abriram ao impacto e à influência dos inovadores do além-mar. De maneira progressiva, a ficção norte-americana (e, certamente, os primeiros filmes norte-americanos) começou a deixar sua marca por volta dos anos 1920, não somente no eixo leste-oeste, mas também no norte-sul e em várias outras direções. Ao mesmo tempo, a “grande tradição”, como chamávamos, nos Estados Unidos, era essencialmente européia – a “grande tradição” das obras “clássicas”, que estavam sendo repensadas por alguns, mas que mantinham sua influência global como o “canhão do oeste”.
Uma outra, digamos, tração leste-oeste, para os Estados Unidos, foi a do Pacífico: o extremo oeste que continuamos a chamar, no molde europeu, de extremo leste. Algo desta natureza já estava presente em “passage to India” (“passagem para Índia”) de Whitman, e a in-fluência chinesa no primeiro movimento poético nascido na América, o “imagismo”, era evidente em “invention of China” (“invenção da China”) de Pound como no trabalho de outros de seus pares. Diferente da conexão européia, entretanto, não havia a presença do novo e inovador vindo daquela direção oriental, embora novos poetas na China e no Japão logo sentiriam o impacto dos mesmos inovadores radicais que estavam remodelando a poesia ocidental com suas idéias, entre outras, de open verse e linguagem demótica.
Minha própria experiência com estes direcionamentos foi um tanto diferente. As circunstâncias do meu envolvimento com a poesia foram pós-Segunda Guerra Mundial – cerca de uma década depois – e a poesia americana (em especial com o surgimento do movimento Beat) estava prestes a abrir seu caminho e dividir espaço com contem-porâneos europeus – até mesmo predominar em alguns lugares. No entanto, a situação era bem mais complexa do que pode parecer. Nos Estados Unidos, por exemplo, eu fazia parte de um movimento de poetas que olhavam tanto para o exterior quanto para o interior, em termos “nacionais”, e um dos gestos importantes para nós foi uma volta à geração anterior de poetas sul-americanos e também alguns mais nossos contemporâneos. Isso indicava uma nova perspectiva – no final dos anos 1950 e início dos anos 1960 – de poetas como César Vallejo, Pablo Neruda, Vicente Huidobro, Nicanor Parra, Octavio Paz, e muitos outros – uma abertura para seus experimentos e um trabalho acelerado de tradução para transmitir aqueles experimentos. Fiquei sob aquele feitiço juntamente com uma série de poetas norte-americanos como Clayton Eshleman, Bly, Tarn, Wright, Paul Blackburn, Edward Dorn, e outros como Eliot Weinberger ou David Guss, mais conhecidos pelas suas traduções do que por suas próprias criações. Ao mesmo tempo, houve uma onda de interesse por escritores afro-caribenhos como Césaire e Depestre, e, também, uma onda de interesse pela poesia visual e concreta brasileira.
Também pela primeira vez nossa idéia de “poesia transnacional” começou a penetrar fundo na “fibra americana” em favor de uma nova “poesia clássica”, advinda de fontes de índios americanos, juntamente com um reconhecimento atrasado das possibilidades literárias e extraliterárias da cultura afro-americana. Foi a minha chance, com Technicians of the Sacred (Técnicos do Sagrado) (1968), de abrir caminho em todas as direções – leste-oeste, norte-sul, terceiro e quarto mundo – os dois últimos são parte da distinção norte-sul a que você deve estar se referindo em sua pergunta. Se minha busca focasse em origens – origens trans-humanas, como eu as via – havia outros melhor posicionados e qualificados para explorar as possibilidades e destinos contemporâneos de tal etnopoética. (Em anos recentes, como estou morando na fronteira entre o México e os Estados Unidos, houve também a possibilidade de explorar um transnacionalismo ao cruzar a fronteira várias vezes, como Mark Weiss menciona no título de uma nova antologia bilíngüe da poesia de Baja California, al otro lado).
Leste e oeste, e norte e sul, este “transnacionalismo” e/ou “transculturalismo” (palavras que englobam bem mais do que internacionalismo e com menos conotações negativas do que globalismo) tem sido trazido desde os anos 1960 por várias revistas multilingües (El Corno Emplumado [no México], Gate de Stefan Hyner [na Alemanha], Change e Action Poetique [em Paris], Sulfur e Caterpillar de Eshleman, Hambone de Nathaniel Mackey), e por vários festivais e reuniões de poesia, e, mais recentemente, pela atividade transnacional renovada via internet. Tudo isso aponta para uma porosidade de fronteiras, mesmo numa época em que uma pressão contrária ao isolamento cultural e conflito étnico/ religioso está novamente investindo furiosamente em todo o mundo.
Alguns anos atrás, Donald Allen, que vinha compondo sua antologia central, The New American Poetry (A Nova Poesia Americana), me descreveu num contato pessoal como alguém que está aderindo à idéia de uma “poesia internacional” em contraste, acredito eu, com o que ele estava fazendo então. Fiquei pouco à vontade com isso na época, mas, nos anos seguintes, passei a aceitar o que realmente sou e quero ser. Do meu lugar, venho tentando cruzar fronteiras e períodos enquanto permaneço firmemente arraigado onde moro e trabalho. Minha antologia poética mais recente, Poems for the Millennium (Poemas para o Milênio), é uma celebração desta postura.
Cecilia Vicuña: Por favor, fale um pouco sobre seus processos de criação, no começo e agora. Houve fracassos?
Jerome Rothenberg: Meu senso de fazer poético vem diretamente da poesia – a idéia, apreendida logo no início, de que a linguagem moldada e manipulada do poema não poderia ser mantida no papel, com isso perdendo metade de seu poder, por uma tradição de leitura silenciosa. Eu gostava de pronunciar as palavras em voz alta – tanto poesia quanto as falas das peças, que eu costumava ler e representar com grande prazer quando criança. Eu queria muito ser um ator, mas percebi depois de um tempo que eu era muito tímido para isso, que eu recuava diante de um papel, apresentando-me em público como alguém que eu sabia que não era.
Ler poesia ou representá-la era diferente, algo mais parecido com música, embora eu não tocasse um instrumento ou cantasse, eu tinha imenso prazer em ler um texto. Na adolescência eu lia poemas em voz alta com amigos ou me trancava para representar peças inteiras de Shakespeare sozinho, fazendo vozes diferentes (eu acho). Quando surgiram os primeiros gravadores, lembro-me do choque ao ouvir minha voz lendo Whitman ou, até mesmo, poemas de minha própria autoria. E alguns anos mais tarde, na pós-graduação em Michigan, eu dei a Austin Warren, então um “novo crítico” famoso, uma fita gravada “lendo Walt Whitman” como um trabalho semestral – minha seleção e minha voz, juntamente com imitações (escritas) de Emily Dickinson – e concordamos, eu acho, que era assim que deveria ser.
Aconteceram outras coisas também, mais evidentes à medida que conhecia o mundo exterior. Lembro-me de uma gravação do ator John Gielgud lendo poesias (novas e antigas) com as quais um amigo mais velho tinha me presenteado, Façade (Fachada) de Edith Sitwell e Four Saints (Quatro Santos) de Gertrude Stein um pouco mais tarde, e quando eu tinha 16 ou 17 anos, uma série de leituras de poetas em Nova Iorque – Dylan Thomas, T. S. Eliot, e.e. cummings, e outros. Às vezes imitava suas vozes, preocupado com meu sotaque nova-iorquino antes de começar a apreciar como algo valioso para mim. Tudo isso foi uma preliminar do que se tornou possível mais tarde.
A etnopoética chegou gradualmente e não tomou forma até o final dos anos 1950 ou início dos 1960. O que me lembro de um pe-ríodo anterior são as canções das sinagogas do bairro e minha própria participação na época do meu bar mitzvah. Havia resistência, mas também atração, e sinto dificuldade em dar alguma importância. Mas era obviamente uma forma diferente de apresentar a linguagem, como eram as várias outras coisas que vieram a mim: as vozes de pregadores negros no rádio, o blues falado de cantores como Woody Guthrie e Pete Seeger, letras sem palavras do jazz e improvisação vocal antes mesmo de eu conhecer qualquer coisa sobre poesia sonora e Dadá, o som do latim e grego cantado nas igrejas católica e ortodoxa onde também nos aventuramos. Lembro-me de antigas gravações que ficaram disponíveis através da Folkways Records e da Biblioteca do Congresso – principalmente os encartes nos quais as letras estavam escritas.
Mesmo assim, os textos é que realmente me interessavam – especialmente aqueles que me guiaram pelas maravilhas das tradições orais e místicas que eles representavam através da escrita e da tradução. Quando a faculdade me deu acesso às bibliotecas e a uma gama muito maior de tais obras – no final dos anos 1940 em Nova Iorque, início dos anos 1950 na Universidade de Michigan – a idéia de uma etnopoética começou a tomar forma para mim. Aqueles vislumbres coincidiram com uma explosão na década seguinte de leituras em público e representações, em espaços alternativos que trouxeram o trabalho à tona. Havia também apresentações de poesia & jazz para me encorajar, e talvez até mais, meus primeiros encontros com Jackson Mac Low e outros poetas Fluxus e artistas para quem John Cage era certamente o personagem central.
Isso fazia parte do que estava “no ar” – nosso próprio paideuma, como Pound e Frobenius o chamaram – e me permitiu considerar como obras orais e tribais podiam se encaixar na nova configuração que estava surgindo. Organizei duas leituras de “poesia primitiva e arcaica” em Nova Iorque e por volta de 1966 ou 1967 estava trabalhando em Technicians of the Sacred. Antes do livro sair, encontrei o antropólogo Stanley Diamond, que me levou ao que seria uma grande ligação com os índios Seneca no oeste do Estado de Nova Iorque. E mais dentro da sua área de interesse também conheci o grande etnomusicólogo americano David McAllester, que tinha trabalhado durante décadas com canções e rituais dos Navajo. O que estas experiências trouxeram para mim foi uma série de traduções experimentais, tanto como forma de arte, texto deri-vado de fontes orais, no caso dos Seneca, quanto como uma tradução de som-para-som e música-para-música no caso das “canções sobre cavalos” dos Navajo.
Nada disso aconteceu isoladamente, mas foram acompanhadas de representações da minha própria poesia nas quais eu me envolvi com compositores e músicos (Charlie Morrow e Bertram Turetzky principalmente, mas também Pauline Oliveros, Philip Corner, e George Lewis, entre outros). Comecei a acrescentar obras Dadá e minha própria extensão das obras Dadá ao repertório das minhas representações, escrevi e interpretei peças para as rádios (alemãs em sua maioria) e trabalhei com o Living Theater e suas ramificações de trabalhos mais extensos de representação de poesia.
Dessa forma, a representação – inspirada pela experiência etno-poética – exigiu muito da minha energia enquanto continuava a explorar as dimensões semânticas da poesia e finalmente voltar ao livro como o outro lugar básico de composição e representação. Era a minha intenção – no tempo que me foi dado – tentar ser um poeta de todas as maneiras disponíveis para mim.
Régis Bonvicino: Qual a sua opinião sobre “antologias”? Você acha que elas correm o risco de serem superficiais? Desta forma, qual é, na sua opinião, o destino da poesia escrita hoje?
Jerome Rothenberg: Em meados dos anos 1960, foi-me dada a chance de fazer uma grande antologia de uma área da poesia que até então raramente tinha sido incluída em antologias. Usando o vocabulário da época, as palavras que descreviam aquela área eram “primitiva” e “arcaica”, mas eu pensei ter mudado isso com a frase de abertura: “Primitivo significa complexo”. (Mais tarde dispensei aquelas palavras.) Ao compor o livro Technicians of the Sacred, percebi que uma antologia não precisava ser um instrumento de conservadorismo, mas poderia ser usada como veículo de transformação. Minha intenção com Technicians era explorar a poesia oral e suas profundas tradições culturais numa escala global. O que me levou também a formas alternativas de escrita e outras apresentações visuais da linguagem, juntamente com uma atenção aos contextos visionários e xamanísticos para a poesia e para formas de linguagem construídas que lembravam o que aprendemos a ver como poesia. Introduzi uma seção de “comentários” na qual pude especificar aqueles contextos e conectar obras tradicionais, geralmente ritualizadas, para nossa própria poesia experimental – como a conhecíamos ou como estávamos tentando inventá-la.
Com o passar do tempo, passei a ver as antologias como uma espécie de montagem de tamanho épico – uma obra altamente elaborada e construída – e como um manifesto para qualquer poesia que estava por vir. Superficialidade, já que você levantou a questão, não fazia parte do quadro. Pelo contrário, minha proposta para as antologias históricas e etnopoéticas era “reconfigurar o passado poético do ponto de vista do presente”, e para os modernos e pós-modernos era simplesmente: “I will change your mind.” (“Farei você mudar de idéia.”) (O jogo de palavras aqui provavelmente só é percebido no inglês.) As seguintes montagens de antologias vieram depois de Technicians of the Sacred:
– Shaking the Pumpkin (Sacudindo a Abóbora) – poesias tradicionais dos índios norte-americanos, com comentários semelhantes àqueles em Technians of the Sacred;
– America a Prophecy (América uma Profecia) (com George -Qua-sha)- – uma nova leitura da poesia (norte) americana da era pré-colombiana até o presente;
– Revolution of the Word (Revolução do Mundo) – uma nova perspectiva da poesia americana experimental entre duas guerras mundiais;
– A Big Jewish Book (Um Grande Livro Judeu, mais tarde conhecido como Exiled in the Word, Exilado no Mundo) com o título secundário: Poemas & outras visões dos judeus da era tribal até o presente;
– Symposium of the Whole (Simpósio do Todo) (com Diane Rothenberg) – uma coleção de textos que passei a chamar de etnopoética, de Vico a María Sabina e Robert Duncan;
– Poems for the Millennium (dois volumes, com Pierre Joris) – uma antologia global da vanguarda modernista e pós-modernista;
– A Book of the Book (Um Livro sobre o Livro) (com Steve Clay) – uma variedade de ensaios e obras verbovisuais que exploram a poética e a etnopoética do livro e da escrita.
Acho difícil dizer como isso se aplica ao “destino da poesia escrita”. Talvez, palavras como estas, que tomam a forma de livros necessariamente grandes, dariam a impressão de aumentar o âmbito da escrita, onde até mesmo o que antes era oral parece, como tudo mais na formulação de Mallarmé, existir para acabar num livro. O futuro do livro não me preocupa, mas me preocupa muito o que vai dentro do livro. Sinto que meus esforços são justificados se sou capaz de abordar um novo tópico ou um velho tópico de novas maneiras. Também espero, pessoalmente falando, que as antologias, os grandes livros que montei, sejam lidos juntamente com meus poemas e traduções (algumas contidas nas antologias) como um todo, um projeto unificado. Acima de tudo, gostaria de pensar nelas como um presente para e de poetas e outros que viveram – muito mais do que eu – uma vida de poesia.
Marjorie Perloff: Como a tradução do Dadá alemão e da poesia concreta – Schwitters, Ball, Jandl, etc.– influenciou sua própria poesia? É mais compatível com você do que o Dadá francês?
Jerome Rothenberg: Entre os Dadás, Schwitters foi claramente aquele com quem tive um encontro mais extenso através da tradução, enquanto que o poeta concreto no qual trabalhei extensivamente foi Gomringer, nem tanto Jandl. Com Ball, a única forma de tradução que tentei foi uma representação do seu trabalho sonoro, Karawane, que inseri na minha própria recriação de That Dada Strain (Aquele Estilo Dadá). As traduções também incluíram um grupo menor de poetas da língua francesa como Tzara e Picabia, mas That Dada Strain, a série completa de poemas, foi tanto minha reação quanto as traduções.
No final dos anos 1950 e começo dos 1960, quando o grande livro Dadá de Motherwell me introduziu ao Dadá, achei que era necessário uma coletânea somente de poemas. Motherwell tinha apresentado muito poucos, então anunciei que eu estava preparando uma antologia que seria chamada That Dada Strain e publicada pela minha editora, Hawk’s Well. Traduzi um punhado de Tzara, Arp, Schwitters, Huelsenbeck e Picabia, mas a editora não durou e me desviei deste objetivo. Não voltei a fazer nada parecido até os anos 1970 e That Dada Strain, como surgiu na época, era uma série de poemas dirigida aos poetas Dadá – uma espécie de transcriações, termo cunhado pelo brasileiro Haroldo de Campos.
Agindo assim, não creio que estivesse favorecendo tanto o Dadá alemão quanto o Dadá de Zurique – mesmo porque a postura anti-guerra e transnacional dos exilados de Zurique correspondia aos meus sentimentos sobre o Vietnã e as conseqüências do Vietnã – sobre toda a experiência de guerra e repressão no século xx se chegasse a isso. Mesmo assim, Paris está muito presente nos dois poemas de abertura, assim como a Alemanha de Schwitters no poema dirigido a ele. Foquei em Schwitters novamente mais tarde – por meio da tradução – porque o vi como um extremista experimental, cujo trabalho coincidiu com muito do nosso próprio tempo, mas nunca tinha sido traduzido e transportado para o inglês. (Exceto por ele, obviamente, quando estava exilado na Inglaterra). O fato de que o próprio Schwitters foi vítima da guerra e do fascismo também me atraía.
Além disso, tentei apresentá-lo como precursor da poesia concreta, mas seus poemas concretos assim como seus poemas sonoros e seus poemas em inglês não precisavam de tradução. As traduções de poesia concreta que fiz foram de Gomringer – um livro inteiro traduzido para o inglês como uma espécie de manual, eu achava, não somente da poesia de Gomringer, mas dos fundamentos da tradução, trabalhando numa área de poesia mínima que parecia fugir da tradução. Para mim, um processo de transcriação foi uma série de canções ritualísticas, que traduzi da “sociedade dos animais místicos” dos índios Seneca. Eu as tinha coletado com a colaboração do cantor e ritualista Seneca, Richard Johnny John, e queria mostrar a sofisticação do aparente uso mínimo de palavras e vocábulos (sons “sem sentido”) no canto Seneca. Ao invés de montar um poema canção como este:
um poema para os animais místicos
Os animais estão vindo
He-eh-eh-heh.
Eu montei assim:
H E H E H H E H
H E H E H H E H
Os animais estão vindo H E H U H H E H
H E H E H H E H
H E H E H H E H.
Achei que os resultados seguiram o sentido do que Ernest Fenollosa, pioneiro no jogo e no dizer algo bem diferente, no campo da tradução, havia chamado de “um vislumbre brilhante de poesia concreta”.
Marjorie Perloff: Ao traduzir, você tenta recriar os ritmos do original ou adapta o trabalho para a linguagem americana?
Jerome Rothenberg: Eu diria que as duas abordagens são possíveis e talvez uma terceira um pouco diferente das duas. Depende da proximidade das duas línguas ou tradições poéticas e que características estou tentando ressaltar ou o que quero provar. Em geral, prefiro uma linguagem americana e contemporânea, mas se há um elemento crucial no original que vai contra isso, tento mostrá-lo, mesmo que seja suficientemente importante, de uma forma amplamente exagerada. Com Lorca, por exemplo, quando traduzo Suites, quero que elas fluam no inglês americano, mas com ecos do lirismo espanhol que de outra forma seria estranho para mim, ou com indícios de rima e canção, onde parece natural que ocorram. (As traduções do provençal por Paul Blackburn são um modelo – muito mais contemporâneo e interessantemente musical do que as versões quase vitorianas de Pound.) Entretanto, em The Lorca Variations (As Variações Lorca), que são talvez minha melhor tentativa de transcriação ou o que chamo em algum lugar de “othering”, agarro-me aos elementos do vocabulário de Lorca da minha tradução direta de Suites e moldo poemas que posso considerar essencialmente meus.
Há muitas outras abordagens, mas falarei somente de mais uma, sobre a qual discordamos uma vez. Ao traduzir Schwitters, às vezes (não sempre) eu deliberadamente me moldava no inglês errático de seus poemas em inglês e suas autotraduções, suponho que no sentido de me colocar em seu lugar como um autotradutor. Também encontrei um grau de irregularidade, igualmente intencional, em seu alemão, então creio que ficamos quites.
Charles Bernstein: Muitos dos poemas de A Book of Witness (Um Livro de Testemunha), seu novo livro, são centrados nas possibilidades do “eu” e, por extensão, expressão pessoal. Entretanto, muito do seu trabalho, como editor, poeta e tradutor, tem tentado descentrar o verso convencionalmente auto-expressivo. Pode nos falar sobre a tensão entre expressão e construção no seu trabalho?
Jerome Rothenberg: Esta foi certamente uma das idéias propulsoras de A Book of Witness, algo em que tinha pensado antes, mas no qual nunca tinha trabalhado tão deliberadamente. A questão de auto-expressão passou a dominar muitas das abordagens convencionais de poesia, a tornar a poesia quase exclusivamente uma arena para a voz lírica, de primeira pessoa. Como muitos de nós, escapei dessa idéia fixa e, como muitos de nós, resisti a ela. Minha idéia para a poesia era que, mesmo quando trabalhávamos em formas mais curtas, a variedade de voz a que tínhamos acesso, assim como a variedade de assunto ou vocabulário, deveria ser ilimitada. Ao mesmo tempo, estava fascinado por certos trabalhos – em grande parte, mas não exclusivamente etnopoética – nos quais a primeira pessoa (“eu” e “me”) era usada de maneiras que iam muito além do pessoal. Usei a primeira pessoa feminina e masculina.
Tudo isso, como você diz, é uma questão de composição e de expressão, e eu não tenho certeza se expressão ou auto-expressão é algo além de enganosa quando falamos dela. Em retrospectiva, vejo que estava usando o pronome “eu” para estabelecer uma série de repetições, mais pelo bem da contradição do que da concordância. Claro que eu poderia mudar para a terceira pessoa (“ele” ou “ela” ou “eles”) com resultados semelhantes, mas o poder do “eu” e uma certa flutuação em seu uso – entre fato e ficção – tinha um significado diferente. Estava claro que a linguagem me permitia o “eu” para testemunhar, mas o que ele estava testemunhando e quem em qualquer instância era a pessoa, o “eu”, quem estava falando? Assim, comecei a sentir que um uso livre do “eu” não iria tanto assumir uma identidade quanto colocá-lo em questão.
Cecilia Vicuña: No prefácio de New Selected Poems: 1970-1985 (Novos Poemas Selecionados), você se diz uma testemunha, creio eu, não somente do mundo mas de seu próprio processo, o que nos leva à antiga questão de “el desdoblaje”, estando dentro e fora de si ao mesmo tempo enquanto cria. Poderia explorar isso um pouco mais?
Jerome Rothenberg: Esta é uma pergunta diferente daquela de Charles embora toque no mesmo assunto e na palavra “testemunha”, que suponho seja central na minha idéia do que pode ser o objetivo da minha poesia. No prefácio que você mencionou, a declaração sobre testemunhar tem o seguinte sentido: “Eu sou uma testemunha, como qualquer outra pessoa [do mundo, do presente, como ele vem & vai], & todas as experiências [os poemas] para mim… são passos em direção à recuperação/descoberta da linguagem para aquele testemunho”. Simultaneamente, vejo-me recuando frente a esta declaração porque me parece que vi e senti tão pouco. No entanto, continuei voltando a ela com a impressão de que um pouco pode ser suficiente e que eu posso usar os meios à minha disposição para ser um canal para outros – mais intenso para outros que viram e sentiram muito.
Em Khurbn, o ciclo de poemas que escrevi sobre o holocausto, eu me abri para outras vozes, testemunhas daqueles eventos, ao compor, construir, textos – minhas próprias palavras se entrelaçaram (colaram) com as deles. A Book of Witness é muito mais construído, muito menos reprimido pela sua temática. Aqui eu tomo a primeira pessoa (“eu”) como voz de testemunha e vou onde ela me leva, enquanto eu confronto as problemáticas do testemunho e a possível mentira de falar na primeira pessoa – na voz da testemunha. Estou ciente também da degradação da primeira pessoa, tanto por poetas próximos a mim que a desacreditam quanto por outros que a restringem a uma perspectiva estreita e “confessional”. No posfácio de A Book of Witness, eu falo dela como “o instrumento – em linguagem – para todos os atos de testemunho, a chave com a qual nós nos abrimos para outras vozes que não a nossa mesma”.
Quando falamos de representação, entretanto, eu apareço como sou – como o apresentador de meus próprios trabalhos ou de trabalhos como Karawane de Hugo Ball ou London Onion de Schwitters do qual me apropriei. Não estou ciente de representar outro papel que não seja o meu; isto é, não preciso assumir um personagem para representar, como faria um ator; simplesmente tenho que me preparar para a representação como um músico faria. Dessa forma, também estou ciente de que “eu mesmo” no ato da representação é diferente para mim de “eu mesmo” em outra situação. Gosto do seu termo desdoblaje, que interpreto como uma separação ou quebrar no meio, e acho que o que acabei de dizer pode ser minha versão dele.
Ou colocado de forma mais simples: me ouço falar e naquele momento da representação sou tanto o sujeito quanto o objeto: aquele que ouve e que fala.
Cecilia Vicuña: Quando ouço sua estória de crescer no Bronx, em 1948, um bairro “atrasado”, num lugar que ainda não recebera a notícia do fim da “idade do moderno, do experimental & visionário”, vejo sua experiência como paralela à nossa, na América Latina, que viveu sempre o mais “atrasado”. Quando você finalmente descobriu poetas latino-americanos, você sentiu afinidade/diferença com relação a eles? E como isso se compara ao seu encontro com María Sabina?
Jerome Rothenberg: Como diz David Antin em um dos seus poemas falados: “somos todos de Chula Vista”. Ter vindo de um lugar assim – “crescendo… atrasado no tempo” – é de certa forma uma experiência comum que temos, seja uma questão de localização ou do momento, ou ambos. Chegamos atrasados no mundo que surgiu diante de nós e temos que lutar para sair daquele mundo e apesar disso criar aquilo que pode ter sentido nos nossos termos. De outro lado, podemos prever que outros nos seguirão (atrasados no tempo que nós estabelecemos), como aqueles “outros trabalhadores horríveis” da imaginação de Rimbaud que “vão começar dos horizontes onde sucumbimos”.
As “notícias” que me chegaram em 1950 foram diferentes das verdadeiras notícias de poesia e foram, portanto, inúteis – uma suposição generalizada que “a idade do moderno, o experimental & visionário” tinha acabado e que estávamos fadados, enquanto geração, a voltar para o passado pré-modernista. Mas o verdadeiro passado do modernismo era exatamente o que precisávamos para construir um novo pós-modernismo – pelo menos na minha forma de ver. Nesse sentido, minha tarefa era procurar uma saída de minha própria Chula Vista, para reivindicar o que veio antes de mim, e para procurar colegas “trabalhadores” onde pudesse encontrá-los. Isso me levou primeiro ao “vortex” de Nova Iorque, usando o termo de Pound, e à era de co-mu-nicação rápida, logo fui capaz de me conectar com poetas de todo o mundo.
Meu primeiro contato com poetas latino-americanos foi em 1960, quando viajei para a Cidade do México e encontrei Homero Aridjis e vários outros poetas da minha idade ou mais jovens. Alguns anos mais tarde, Paul Blackburn me apresentou a Octavio Paz, que encontrei primeiro em Nova Iorque e, mais tarde, em Paris e México, e a Julio Cortázar. No início dos anos 1960, Sergio Mondragón e Margaret Randall estavam publicando El Corno Emplumado. Simultaneamente, como expliquei para Charles Bernstein numa questão anterior, eu era um dos vários poetas americanos que tinham mergulhado nas obras de nossos predecessores latino-americanos – Vallejo, Neruda, Huidobro, entre os muitos que estávamos lendo e traduzindo. Isso nos abriu as fronteiras do modernismo do século xx de maneira que um foco exclusivo no modernismo europeu e americano não teria feito. Com os poetas latino-americanos mais velhos senti uma diferença necessária, mas produtiva, enquanto os mais jovens me pareciam contemporâneos com quem dividia um mundo e um discurso “pós-guerra”.
Meu encontro com María Sabina foi surpreendentemente diferente, mas como poderia não ser? Com os poetas americanos, norte e sul, bem como com os poetas europeus, havia uma cultura de poesia comum e tínhamos o mesmo discurso como acabei de mencionar. Modernismo e pós-modernismo eram os principais objetos, e mesmo quando me voltei para poetas vivos do Japão e da China, por exemplo, as diferenças de linguagem e cultura já haviam sido enfraquecidas o suficiente para permitir uma porção de jogos para o que era, afinal, nossa contemporaneidade comum. María Sabina vivia num mundo mais estreito e, se possível, mais intenso, mas sem interesse no que eu ou você ou nossos amigos poetas estávamos envolvidos ou preo-cupados. A poesia em si também não era um problema embora a Linguagem claramente fosse. E seu senso de Linguagem como uma força restauradora é que era de interesse extraordinário para mim, embora soubesse que minha Linguagem e poesia não fossem do menor interesse para ela. Quando nos encontramos em Huautla, em 1979, através da influência das famílias de Henry Munn e Álvaro Estrada, pude confirmar nossas diferenças. A tradução para o inglês de seu trabalho Vida, o qual estava ajudando a publicar em inglês, apareceu em 1981 e mais recentemente editei uma versão maior de Vida e dos cânticos, com meus comentários e os de muitos colegas poetas. Nada foi transposto durante a experiência, mas espero que as diferenças tenham sido honradas.
Charles Bernstein: Qual a diferença entre tradução e composição?
Jerome Rothenberg: A resposta pronta seria que não há diferença. Mas isto seria ignorar o que está sendo traduzido e, talvez menos significante, o que está sendo composto. Portanto, tentarei responder sua pergunta como faço em meu novo livro, Writing Through: Translations & Variations (Escrevendo: Traduções & Variações), para o qual você escreveu o prefácio. Ela obviamente vem da minha própria perspectiva e mesmo assim ela cobre somente uma parte do meu trabalho.
Passei a acreditar que composição e tradução formam um contínuo no meu trabalho – que quando traduzo sinto, freqüentemente, que estou simultaneamente compondo, e quando componho – certos trabalhos mais que outros – percebo que estou extraindo de outras vozes ou do trabalho de outros igualmente importantes, que são meus predecessores ou contemporâneos. Alguns dos meus trabalhos mais experimentais tomaram a forma de tradução – em particular os experimentos com poesia tribal e oral da qual falei numa resposta a Marjorie. Nas minhas composições o “outrem” vem em grande parte de colagens e através de operações casuais modificadas (em Gematria e The Lorca Variations, por exemplo). Mas em outro extremo, eu diria prontamente que toda a linguagem é uma forma de outrem – o uso de um instrumento vital para a poesia que nunca é exclusivamente meu, mas que foi aumentado, construído, ao longo dos milênios e por inúmeras gerações de oradores e escritores.
Esta foi a razão, em parte, da minha reação fortemente positiva quando você e muitos outros poetas, mais jovens do que eu uma ou duas décadas, anunciaram o início de uma nova poesia da linguagem. Eu sabia, é claro, que havia diferenças entre nós, mas elas se tornaram insignificantes nos anos seguintes. Ao menos para mim…