“Eu não ‘escrevo’, eu componho, construo, crio, o que pode, no entanto, nada garantir”, afirma Régis Bonvicino em uma entrevista. Ao usar o verbo “compor”, ele se aproxima, deste modo, do universo da música. Tal qual em um LP, Deus Devolve o Revólver tem lado A e lado B; trata-se, assim, de um álbum, com os poemas do livro inédito A Nova Utopia.
Por Irineu Franco Perpetuo*
Régis Bonvicino
Mas eu gostaria de arriscar outra analogia musical e de encarar os lados A e B do álbum como o Ato I e o Ato II de uma ópera urbana contemporânea, em que “violinos afinam a brisa fétida”. Em certo sentido, essa ópera é cíclica, pois começa e termina com a descrição da “nova utopia”, que é “um pouco xiita, apenas quando estritamente inevitável”. Essa nova utopia abre sendo anunciada como “uma borboleta negra, desatenta, com olhos exuberantes” [A nova utopia (1)], é vertida por Odile Cisneros para o inglês (em leitura do poeta Charles Bernstein), e tem um desfecho trágico, dilacerante, uma Tosca do terceiro milênio: “Uma garota se joga do topo do edifício. Sonhar, sonhar, sonhar, é o grande negócio da vida!” [A nova utopia (7)].
Em Deus Devolve o Revólver, a paisagem urbana é visceral, incômoda, fétida e violenta. Não há, entretanto, nada de “conciliatório e resignado” nessa ópera que “não tem mais nada, não tem spleen / só tem porrada”. Seu cenário, nada idílico, é habitado por mendigos, obesos mórbidos, camelôs, noias, ambulantes, sucateiros, cães, putas, catadores de lixo, em meio a urina, papelotes, camburões e cocaína, e no qual “goiabas apodrecem em autópsia mútua”.
Referências à Estação da Luz, ou à esquina da rua Oriente com a rua Casemiro de Abreu, apontam para uma geografia paulistana, que pode se repetir em qualquer cidade, porque somos conduzidos a uma “joint-venture de sem tetos, pele e osso, com medo da polícia, aglomerada no centro histórico de São Luís”, bem como a um arrasador “Bossa Nova nightmare” do Rio de Janeiro contemplado de um quarto de hotel.
O grande solista dessa ópera é o próprio Bonvicino, responsável pela leitura da maioria dos textos. Ouvir um texto lido por seu autor, com as ênfases, pausas e ritmos que ele dá, sempre é uma experiência esclarecedora – algo similar a ouvir a gravação de uma obra musical por seu compositor.
E, aqui, as leituras nunca são “a seco”. Rodrigo Dário criou ambientação sonora para cada poema, com ecos e efeitos em diálogo com os textos. Um diálogo que, sabiamente, resiste, de maneira criativa (sem se valer do gênero canção), ao óbvio: embora os poemas de Bonvicino sejam ricos em alusões musicais (“os soluços longos dos violinos do outono”, “uma nova canção dos Beatles”, “garota de Ipanema”, “o corpo do cara ficou odara”), você não ouvirá trechos dessas obras aqui. E ouvirá, por vezes, vinhetas, que funcionam como interlúdios dessa ópera, transições entre suas diversas cenas.
Toda ópera que se preze requer uma soprano de destaque, e Deus Devolve o Revólver conta com o talento de Caroline De Comi, que, em sua carreira, tem se mostrado inteiramente à vontade tanto no repertório operístico tradicional, como nas mais complexas demandas da música contemporânea. É um prazer ouvir seus agudos pairando sobre os graves do poeta, ou seu timbre cristalino recitando o texto na ária de encerramento da ópera. Caroline demonstra carinho e atenção pelas palavras, e cantarola muito pontualmente, no Sprechgesang que caracteriza esse Pierrot Lunaire brasileiro do terceiro milênio.
* Irineu Franco Perpétuo, tradutor e crítico musical, é especialista em música clássica