Sentimento do mundo
Jornal O Globo, 16 de junho de 2007
Caderno Prosa e Verso, p. 5
Sentimento do mundo
Silvano Santiago*
A orfandade da página, em Régis Bonvicino, é a orfandade do homem
Página órfã, de Régis Bonvicino.
Editora Martins Fontes, 136 páginas. R$ 29,00
Ao final da frase ou do texto, o ponto é uma ordem que o autor transmite ao leitor. Pare, reflita e recomece. Recomeçada a leitura, outro ponto surge logo adiante. Nova ordem: pare, reflita e de novo recomece. Em Página órfã, nova coleção de poemas de Régis Bonvicino, desapareceu o ponto ao final da frase ou do texto. O poeta diz que não é lícito se valer da violência cortante que o ponto representa na composição de qualquer texto poético. Como se lê ao final do livro, a página órfã “é beco sem saída”, “nunca, imitação de vida”. Ela é palavra.
Frase e texto só existem quando bem encerrados entre pontos. Dessa forma é que estabelecem o padrão fixo e monótono que Régis rejeita. O poema e o próprio livro são palavra. Não fluem como uma suíte musical espreitada pelas sacudidelas mecânicas e impávidas do metrônomo chamado ponto. O ritmo do livro é o do rio amazônico que foi acolhendo as águas dos poemas-afluentes até desaguar no mar, que é a caligrafia desenhada pelo artista argentino León Ferrari, seguida do notável posfácio de João Augusto Hansen. Os afluentes fluem ao ritmo do ar que é inspirado e expirado pelo leitor. São poucos os corredores que estreitam a liberdade da leitura e aparentemente a conduzem. Trata-se da vírgula, da quebra da frase em verso, da inicial maiúscula de algumas palavras e do título do poema seguinte. Vale dizer: quase nada constrange o leitor.
Não é, portanto, gratuito o título do livro, Página órfã. O autor/poeta subjugou o troante eu lírico e logo depois, ao refugar o ponto, se deixou assassinar pelo leitor. Os poemas se oferecem órfãos e apócrifos, desprovidos que foram do controle que é imposto pelo uso padronizado do principal sinal gráfico. O poeta é “mau negociante de inutilidades”. Aos poemas e ao conjunto deles falta um sentido dominante e autoritário, escancarado ou escamoteado. Acéfalo, Página órfã exige o leitor fraterno, de inspiração baudelairiana. Simpatizante, numa palavra.
Tomo a esta com o significado que tem na expressão gls. Antes de aceitar a orientação sexual como norma mumificada pela biologia, o simpatizante a concebe como sentido variável, a ser definido por esse ou aquele, independentemente do gênero (gender). Se se tomar gênero (genre) no sentido poético, o simpatizante é o que não se deixa distrair pelas distinções mumificadas pelas poéticas. Poesia ou prosa? Lirismo ou documento? A leitura flui sem os entraves codificados por qualquer dos metrônomos inventados pelo passado. Leiamos o poema que não só se chama “Prosa” como é todo prosa: “um poema não se vende como música, não se vende como quadro, como canção, ninguém dá um centavo, uma fava, um poema não vive além de suas palavras”.
Menos gratuita ainda é a mistura de imagens que os poemas apresentam. O texto se vale ou da técnica da montagem (cinema) ou da colagem (artes plásticas). Sem frases (no sentido gramatical do termo), temas, situações e personagens se montam ou se colam, e o poema avança e os poemas avançam até atingirem o formato livro. Só então tudo pára. O sublime se comunica com o popular. O popular, com o pop. O luxo “muito glitz, muito glam”, com o lixo que “se confunde/ com mendigos”. E sempre vice-versa, já que, onde não há cabeça, os pés não vêm naturalmente justapostos. Como na casa de monsieur Hulot, “tudo se comunica”. As coisas se comunicam, os homens, não. A claridade seca e econômica da composição poética tem uma fonte. A do movimento “imagista”, criado em 1912 por Ezra Pound, T. S. Eliot e outros mais e retomado por Robert Creeley nos anos 1960 (ler o poema bilíngue “In a station of the metro”).
O leitor é simpatizante e dele não se requer atitudes hierarquizantes ou julgamentos de valor. Não tendo sido encerrado por ponto, o poema deixa a cada um a liberdade de reorganizar as palavras no livro pelo sentimento de simpatia quase amor, para retomar o título do bloco carnavalesco carioca, ou de simpatia quase ódio, para avançar uma leitura política, que é a feita no posfácio. Qualquer “palavra” (“dos objetos/ nada é suave”) que exista no papel já traz em si sua hierarquização e julgamento de valor, pois tudo o que se empilha e se cola é o que é destituído de tudo. Tautologia? Sim. A orfandade (da página) é a orfandade (do homem) é a orfandade (do mundo).
Régis Bonvicino oferece a página órfã ao leitor como se, sem códigos e mutretas, estivesse lhe passando o sentimento do mundo de que falou Carlos Drummond na década de 1930. “Cá fora é o vento e são as ruas varridas de pânico,/ é o jornal sujo embrulhando fatos, homens e comida guardada” – lemos no poema “Madrigal lúgubre”. Agora, simpatizamo-nos com o sentimento do mundo que não é mais inspirado pelo sentido da História. Não há sentido único, mão única. Há sentidos e compete a cada qual desenhar um significado que oriente (a página, o homem e o mundo) e nos torne menos tristes e mais felizes. Passageiramente, na pior das hipóteses. Democraticamente, na melhor das hipóteses. Simpatia quase amor, simpatia quase ódio.
Talvez se possa dizer de Página órfã o que Carlos Drummond escreveu em Passeios na ilha: “A igual distância do realismo e do lirismo, ele nos dá, não poemas, nem quadros, nem abstrações, nem documentos polêmicos: fotografias”. As operações da fotografia, acrescenta, “se assimilam naturalmente às da criação poética: a sensibilização pela luz, o banho revelador, o mistério da claridade implícita no opaco, da sombra representada pelo translúcido – ó Mallarmé!…”.
*Silvano Santiago é escritor e crítico.