Em Céu-eclipse, um aspecto visual, quase cinematográfico, do texto se reafirma a cada página. Imagens vão surgindo e desaparecendo gradualmente, como em uma seqüência de fades. Assim, leio o começo do poema “A esmo” como uma seqüência possível de 2 imagens que, surgindo de um início sonoro, lentamente se aclaram e desaparecem: “A esmo / neste desterro / pios / / areia fina / em ponta das canas / andando / / árvore branca / estrias / contra o horizonte firme (…)”. O pulso gradual de imagens prossegue, a escritura vai construindo sua ambiência por meio dessas interrupções; o movimento é lento, quase sensual (em “A esmo”, a impressão é ressaltada pelo fato de que as imagens parecem “tomadas” de vários ângulos da vasta Ilha de Nossa Senhora do Desterro).
Penso que um dos aspectos centrais da estética moderna é o entendimento e o uso radical do espaço. Do cubismo à land art, do suprematismo à arte mínima, há diferentes maneiras de se pensar a intensidade e o significado do espaço. Na poesia, essa vertigem começou com Mallarmé. No Brasil, a vertente ganha forma definitiva e programática na poesia concreta. Neste século vertiginoso, em que praticamente todos os aspectos da vida humana sofreram uma formidável compressão do tempo (e, simultaneamente, uma expansão de suas possibilidades espaciais), é o tempo, ele mesmo, que tende a desaparecer no horizonte de eventos visuais.
Artistas de sensibilidade peculiar, criando a contrapelo, construíram uma obra que resgata o tempo do abismo. Jean-Luc Godard, um deles, reinventou a linguagem cinematográfica ao dar ênfase a técnicas de extensão e prolongamento do tempo (longos tracking shots e fraturas narrativas no tempo contínuo são apenas duas delas). Fez isso de tal forma que a experiência temporal passou a ser a estrutura e também a construtora do sentido. Em Hélas pour Moi, filme de 93, um plano-seqüência, retomado cada vez mais prolongadamente em um trecho da fita, transforma o curto espaço do percurso de um ciclista em uma vastidão interminável. Inicialmente claustrofóbico, por sua repetitiva circularidade, o espaço ganha inusitada extensão por força do prolongamento temporal (Godard, com isso, reverte a fórmula do Romantismo francês, que havia transformado rêve, sonho, em rêverie, devaneio).
Em Céu-eclipse, a “montagem” do texto em fades sucessivos tem o mérito de estender o tempo no poema. Nos “vazios” entre uma imagem e outra, surge um intervalo onírico, em um movimento contínuo de clareação e escurecimento que ecoa, inclusive, no título do livro. Na capa, não por acaso, aparecem relâmpagos noturnos, iluminando temporariamente o breu. Ao longo do livro a técnica se adensa, percorrendo várias e diversas situações. Arrisco-me a dizer que a nova poesia de Régis aparelhou-se em um prolongado diálogo com a poesia experimental norte-americana contemporânea, mas soube extrair-lhe uma substância original. Lá os cortes são mais abruptos, o texto tem cesuras radicais. O olhar são instantâneos sucessivos; o som é polifônico. O “desenho”, quase cubista; o tempo, ricocheteando entre uma aresta e outra, simultâneo. É uma eficaz metonímia do vertiginoso mundo pós-industrial.
Já Régis disso conseguiu compor um método de expansão e fluidez do tempo. Reinventou sua poesia para expressar um outro ambiente. Quando se debruça não somente sobre panoramas, mas também sobre situações sociais extremas, que estão presentes em cada esquina e canto das cidades brasileiras, Régis trabalha uma nova forma de “estetização do social” (um momento intenso se inicia com o poema “Para Ser Incomum” e só se desanuvia com “Valor Total”). Em entrevista recente à Cult, o poeta diz que Robert Kurz sintetiza suas preocupações com a frase: “Se a arte, a poesia, não é mais capaz de refletir positivamente o todo cindido, que o faça negativamente, ao elevar à consciência a precariedade estética do mundo economicista”. Adiante, Régis reafirma que aspira a uma poesia “que se supere a si mesma como crítica da própria desestetização social”. O sentido de “estetização social” está estabelecido por este contexto. A voragem da arte-mercadoria destrói no estético seu conteúdo crítico, e vai confiná-lo na circularidade do consumo.
Tematizar o social não significa necessariamente abordá-lo criticamente. Várias fórmulas, que vão de piegas a retóricas (poemas-manifesto), comprovam-no. Régis, ao contrário, quando “infla” o tempo de suas imagens e as coloca em movimento, consegue duas coisas: a primeira, expandir o conteúdo da reflexão, ao harmonizar contatos entre situações estanques (paradoxos ganham, com o movimento e as aproximações, um novo paradigma). A segunda, mais secreta, e que está no intervalo onírico, é reencontrar um índice de esperança ali onde ele pode estar oculto pela imobilidade e a indiferença (aqui, as escolhas que o poeta faz são fundantes). Seu novo trabalho, mais que um método, propõe a recuperação de uma visão ética. Ao longo de Céu-eclipse, um sentido de presença vai se encorpando, conferindo à poesia um registro mais existencial que literário. Ao se voltar para a utopia, descobrindo nela um nexo, ao se voltar para um conteúdo crítico da estética, relativizando o peso do momento formal, Régis indica um caminho renovado, mais comprometido, para a poesia brasileira.
Para uma sociedade que reserva a seus cidadãos espaços cada vez mais estanques e intransponíveis, em contraste com sua terra de fronteiras topográficas tão lábeis e fluidas, a utopia ressurge nessa poesia como valorização da expansão do tempo e do percurso, uma operação estética que me é, como artista plástico, particularmente fecunda (Régis nos disse que via Céu-eclipse como “um livro esfiapando o contraste esmero/ruína” – o poema é um esmeril, lapidando lentamente restos de imagens). O poeta tenta conectar espaços cindidos (testemunho possível do conflito resultante desse labor temos no poema “Luz”). Seu olhar ousa se demorar sobre suas imagens, dando-lhes movimento (é de inércia que a miséria deste país é feita), e, no confronto dos textos, insinua-se uma alternativa de liberdade e de (auto)superação.
Nesta entrevista a Musa, Régis Bonvicino diz que Céu-eclipse foi pensado “radicalmente para além da fronteira literária”. Não há dúvida. Penso, mesmo, que se refere a uma utopia reencontrada, não àquela utopia modernista que se hipostasiava no futuro (utopia como fim), mas à utopia em uma justeza, um futuro no presente, utopia como presença, utopia (e poesia) como princípio.
Francisco Faria