Manuel Ruiz Amezcua e Régis Bonvicino | 25 maio 2020 | Cultura
É difícil resumir uma vida dedicada a engrandecer e a elevar o nível do cante flamenco. Carmen Pacheco Rodríguez nasceu em Linares, um município de tamanho médio, situado em Xaém (Jaén), uma das províncias de Andaluzia, que, por seu turno, é uma das comunidades autônomas de Espanha. Aliás, foi o cantaor Juanito Valderrama, também da região, quem sugeriu a ela adotar o nome artístico Carmen Linares.
O pueblo de Linares deu ao mundo grandes toureiros, como Palomo Linares, e grandes cantores, como Raphael. Andrés Segovia (1893-1987), que reabilitou e reinventou o instrumento violão (não o violão flamenco) para o universo da música erudita, nasceu também em Linares. Segovia é reconhecido e conhecido no mundo todo. O lendário toureiro Manolete https://sibila.com.br/cultura/o-toureiro-manolete/13702 morreu, em 1947, na Plaza de toros da mesma Linares, após levar uma chifrada na coxa direita, quando pelejava o quinto touro do dia, um miúra de nome Islero A cidade é famosa por suas minas de prata e cobre e consequente atividade de mineração.
Carmen Linares é considerada uma das mais completas cantaoras vivas de sua geração, que inclui cantaores como Camarón de la Isla (1950-1992), este um ano mais velho do que Carmen. A propósito, se estivesse vivo Camarón completaria 70 anos em 2020. Carmen se inclui igualmente no rol de grandes cantaoras de todos os tempos. Ela domina uma variedade extensa de estilos flamencos, cantando-os de forma densa e intensa. Ela deu voz a todos os grandes poetas espanhóis, de Lorca a Alberti, de Hernández a Machado.
Sua projeção internacional é grande: Carmen se apresentou em Londres, Paris, Moscou, Amesterdan, Tóquio, Sidnei, Cairo, Bogotá, Buenos Aires, Nova Iorque, São Paulo, entre outras dezenas de grandes cidades. Apresenta-se, por igual, em peñas (clubes de fomento do flamenco), cidades pobres e lugares humildes.
Desde muito cedo aprendeu com grandes figuras do flamenco do século 20, como Pepe el de la Matrona, Rafael Romero, Fosforito ou Juan Varea, para mencionar alguns. Os melhores guitarristas da atualidade tocam e tocaram com ela: Tomatito, Pepe Habichuela, Juan Habichuela, Vicente Amigo, Manolo Sanlucar, Paco de Lucía, Juan Carlos Romero, entre outros gigantes.
Carmen chegou com sua familia em Madri em 1968, onde completou sua formação nos tablaos madrilenhos de Torres Bermejas. Em Torres Bermejas, compartilhou o palco com os então jovens Camarón de la Isla e Enrique Morente.
O seu Antología de la mujer en el cante (Universal, 1996) é considerado um dos dez melhores álbuns da história do flamenco. Neste álbum, Carmen interpreta cantigas esquecidas e repõe em circulação alguns estilos tradicionais abandonados do cante. Nele recuperou por exemplo a excepcional Niña de los Pienes. Carmen estreia em disco em 1971, mas além de sua grandiosa antologia do cante feminino destaca-se Canciones populares antiguas de Lorca, de 1993. Canções compostas e ou recuperadas pelo poeta de Granada.
Carmen soube enriquecer o flamenco integrando-o a agrupações de câmara e orquestras sinfônicas. Participou em 1988 da reestreia da composição original de El amor brujo de Manuel de Falla. Foi acompanhada pela Orquestra Filarmônica de Nova Iorque em outra ocasião, bem como por orquestras do mundo todo. Carmen é uma lenda viva do flamenco. Em 2020, criou o espetáculo “Cantaora: 40 años de flamenco” (tendo como artistas convidados Estrella Morente, Miguel Poveda, Luz Casal, Silvia Pérez e José Mercé) com o qual faria uma grande turnê espanhola e mundial. A covid-19 a impediu. A entrevista foi proposta por mim ao poeta Régis Bonvicino, que acolheu, de pronto, a ideia e fez suas perguntas, em meio à debacle mundial. Régis me disse que “considera o flamenco a mais importante e rica música popular surgida na Europa continental. Acrescentou: música popular de raiz há tempos substituida pela música de entretenimento, que não propõe reflexão alguma”. MANUEL RUIZ AMEZCUA
- Régis Bonvicino: Pergunto, em primeiro lugar, por que a senhora iniciou sua carreira pelo que há de mais difícil no cante jondo [ver glossário]? Refiro-me à sua precoce maestria nos palos mais duros, e mais emblemáticos, do flamenco.
Eu creio que os cantes por soleá e seguirya são os mais autênticos do flamenco. Adorava ouvi-los de meus mestres e companheiros quando estive em Madri na década de 1970. Quando escutava cantar por soleá ou seguirya mestres como Fosforito, Juan Varea ou Pepe de la Matrona, ou meus companheiros Enrique Morente e Camarón, eu gostava muito.
- RB: Quando a ouço cantar, inclusive com vários instrumentos, parece-me que o faz a palo seco. Por exemplo, em “Primícia”, de 1975, com Paco Cepero, ou em Canciones populares antiguas, de Lorca. Quero dizer que, sempre, independente da canção, a senhora me parece cantar a palo seco. Concorda com esta afirmação?
Quando canto eu sempre me entrego, e dependente de quem me acompanha, faço mais melodias com a voz. Quero dizer que meu cante é autêntico e puro, tanto com a guitarra de Paco Cepero como com um sexteto de guitarra, violino, flauta e contrabaixo. Logicamente, com Cepero eu tinha 24 anos, e nas Canciones de Lorca, 40 anos, e me sentia mais madura como artista e muito mais segura.
- RB. A senhora realizou um trabalho pioneiro, em 1990, com a Antología de la mujer en el cante. Qual a diferença, segundo a senhora, entre o cante feminino e o masculino, se ela existe? Outra coisa: a mulher foi oprimida no flamenco?
Com sua permissão, gostaria de destacar que a Antología de la mujer en el cante , 1996, http://carmenlinares.net/discografia/antologia-la-mujer-en-el-cante/ é um disco que estabeleceu um antes e um depois na minha carreira. A antologia acabou sendo um álbum de qualidade extraordinária, com doze guitarras de primeira nível, como Tomatito, Vicente Amigo, Moraito e Pepe Habichuela, entre outros. Mas ele também é um álbum que vendeu muito bem, e que me deu muito trabalho. Do que mais gosto em relação a ele é ser uma homenagem às antigas cantaoras de flamenco e continuar sendo uma referência para cantaores e fãs de flamenco ainda hoje. Quanto à diferença entre cante feminino e masculino, acho que não há diferença em nível técnico. Um homem e uma mulher podem cantar os mesmos estilos no flamenco. Mas creio que as cantaoras se expressam de uma maneira diferente, porque sentimos e vivemos situações que os homens não vivem, como a maternidade e o machismo. Embora os homens vivam outras coisas que não vivemos. Acho que há trinta anos atrás as mulheres ainda eram oprimidas em qualquer atividade. No flamenco era igual, porque se não fosse, nos anos 1980 e 1990 haveria muito mais cantaoras. No meu caso, tive muita sorte, porque meu marido e meu pai me deram todo apoio, e eu nunca deparei na minha família e nos meus amigos com nenhuma oposição.
- RB. Quando vejo vídeos de flamenco, com um cantor e um guitarrista, lembro-me da Bossa Nova; por exemplo, João Gilberto cantava com um banquinho e um violão. Mesmo quando há palmeros e bailaores, o flamenco é minimalista, reduz tudo ao essencial. A senhora concorda com a ideia de que o flamenco tira o máximo de mínimo de recursos? O flamenco é minimalista?
O flamenco é uma música de riqueza extraordinária, como a Bossa Nova (nascida do samba), o fado, o soul e qualquer música de raiz. São letras e músicas que vêm do povo, que têm uma grande verdade e muita qualidade, e não precisam de muita instrumentação. O flamenco de cante, guitarra, palmas e baile sempre funciona. Ainda que, confesso, sinto-me livre e gosto de cantar com trio de piano, contrabaixo e bateria as letras de Lorca, ou “El Amor Brujo” com uma orquestra sinfônica. Se uma música tem qualidade o cante flamenco sempre lhe acrescenta e segue a par com a música e a letra.
- RB: A senhora tem um forte relacionamento com alguns poetas: García Lorca, Miguel Hernández, Antonio Machado, Juan Ramón Jiménez, entre outros. Qual a razão para abordar esses poetas, eruditos mas populares ao mesmo tempo?
Na Espanha os poetas mais reconhecidos são Federico García Lorca e Antonio Machado. Eu me aproximei quando meu amigo Enrique Morente gravou o álbum de Miguel Hernández em 1973. Então descobri a grandeza do flamenco quando se interpretam os poetas. A partir daí, cantei versos de Antonio, Manuel Machado e Lorca em alguns álbuns e peças de teatro em que colaborei. Mas quando ouvi La Argentinita cantar com Federico García Lorca ao piano as canções populares que escutava quando criança, decidi gravá-las, em 1993, e foi uma experiência maravilhosa, que me deu a oportunidade de me aproximar da poesia com um repertório fantástico, e com o qual eu viajei pelo mundo por muitos anos. No caso de Juan Ramón Jiménez e Raíces y Alas (2007), é um álbum feito sob medida para o grande guitarrista Juán Carlos Romero. Quando canto a poesia de Juan Ramón, sinto que é de uma sensibilidade muito especial. O disco de Miguel Hernández, Verso a verso (2017), deixou sua marca em mim, porque cantar Miguel Hernández é como se esvaziar a cada passo. Sua poesia possui grande verdade e humanidade, tanto em canções rítmicas e alegres como “Para la libertad” ou “Canción de Vendimiadoras”, como em cantes de amargor e sofrimento, como “Compañero” ou “Todas las casas son ojos”. Cresci muito como artista cantando nossos poetas e, na verdade, continuo cantando-os no meu último show, 40 años de flamenco, em números como “Leyenda del tiempo”, com piano de Lorca e dedicado a Enrique Morente, “Para a libertad”, de Miguel Hernández, “In Pace”, de José Angel Valente, e “Moguer”, de Juan Ramón Jiménez, para fandangos com guitarra e coro de mulheres.
- RB: Acredito que o rock brasileiro não teve grande importância para a renovação da música brasileira, exceto em 1967 e 1968, no movimento tropicalista, com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Os Mutantes. Como cantaora flamenca, a senhora já se aproximou do rock espanhol?
A única vez que colaborei com um grupo de rock foi em 2013, em um álbum de Los Evangelistas dedicado a Enrique Morente. Cantei uma seguiriya que conhecia muito bem com o grupo de Antonio Arias, Soleá Morente e Los Planetas, que haviam trabalhado com Enrique Morente no álbum Omega de 1996. A verdade é que me senti muito bem e foi uma experiência muito interessante. Nos apresentamos em Barcelona, Madri e Sevilha.
- RB: Em uma entrevista, alguém lhe perguntou: “Além do flamenco, o que gosta de escutar?” A senhora respondeu: “Não tenho muito tempo, mas procuro saber o que está acontecendo na música brasileira, no fado e em outras músicas. Quando trabalho, às vezes ouço pop”. E eu agora lhe pergunto: que música brasileira a senhora escuta hoje? Qual música pop?
Ouço os clássicos da Bossa Nova. Na última vez que estive no Brasil, em 1999, comprei muitos discos para meus filhos, de artistas como Vinícius, Caetano e Maria Bethânia para introduzi-los à música brasileira. No ano passado, com meu filho Edu, que é guitarrista, fui a um concerto de Yamandú Costa e adorei, é um grande músico e ótima pessoa.
- RB: Em uma entrevista recente, a senhora disse que daria o Prêmio Nobel a Camarón de la Isla. A senhora poderia falar sobre ele e sua importância no mundo do cante flamenco? Ele e Paco de Lucia estiveram no Brasil em 1973. Paco é bem conhecido aqui, e Camarón é não é conhecido. Por que será?
Tenho orgulho de pertencer a uma geração maravilhosa, de artistas extraordinários, como Tomatito, José Mercé, Juan e Pepe Habichuela, Manolo Sanlucar, Camarón e Paco de Lucía. Eu sinceramente acredito que o flamenco é uma das melhores musicas que existem, e é mais universal graças a todos nós. Pessoalmente, daria o Nobel a Paco de Lucía, Manolo Sanlucar, Camarón e Enrique Morente. Eles merecem isso porque foram e são mestres, gênios e grandes criadores. O Brasil é um país fundamental para a cultura universal, e pelo qual nós, espanhóis e flamencos, temos uma dedicação e um carinho muito especiais.
- Manuel Ruiz Amezcua: Carmen, a arte e o cante flamencos foram declarados Patrimônio Imaterial da Humanidade. Qual é, na sua opinião, a característica mais universal do flamenco?
A essência do flamenco permanece a mesma: a essência da verdade. Acredito que a verdade sentida, a verdade de cada um, contada na primeira pessoa, é a característica mais marcante do flamenco. Foi pelo caminho da verdade que o flamenco se tornou um patrimônio da humanidade. Temos um sinal de identidade que, sendo nosso, é ao mesmo tempo universal. O flamenco foi criado por artistas corajosos e geniais que lhe deram grandeza de forma e substância. O flamenco é um poço que continua a dar água fresca e limpa.
- MRA: As grandes criações coletivas da humanidade são seu patrimônio universal. O flamenco o é por muitas razões. Já em suas raízes, alimenta-se de algo universal: a miscigenação, a mistura; judeus, mouros, cristãos e muito mais. Carmen, qual você acha que é a característica mais importante que une o flamenco com o jazz e o tango?
Diria que o flamenco é uma música popular que possui muita diversidade musical e rítmica, como o jazz, e uma grande verdade em suas letras, como o tango. Os três gêneros musicais têm suas raízes no povo. São músicas da tradição oral, a alma dos povos, que sofreram e desfrutaram em sua história. Músicas sobreviventes, que mantêm uma energia perene, porque nelas está o mais sagrado das emoções e do amor humanos. Expressões em que há uma grande relação entre arte e ritual. Portanto, os três são iguais, embora tenham um tratamento instrumental e vocal diferente. E são afetos tanto a homens quanto a mulheres, que os fazem viver com força extraordinária e nos permitem encontrar emoção e paz espiritual, tão necessária neste momento.
- MRA: O flamenco nasceu na Andaluzia, mas pertence à humanidade. Tem vocação universal, como a melhor cultura andaluza e espanhola. Nas coplas flamencas, o que acontece com o protagonista acontece com toda a humanidade. Onde se oculta o segredo mais profundo disso?
Acredito que as letras populares são criadas pelo povo porque refletem as alegrias e os sofrimentos do povo andaluz. Essas experiências são a verdade da vida, e o flamenco é a música que expressa essa verdade.
- MRA: O flamenco parece nos dizer: “Quanto mais anos tenho, tenho mais futuro”. É clássico e moderno, muito antigo e muito jovem. Ele sempre tem algo novo a dizer. Nele ressoa uma moral da memória, como nas grandes criações da humanidade. A que Carmen Linares acha que isso se deve?
Acho que é porque o flamenco é uma arte viva e uma música de riqueza extraordinária e, como você disse muito bem, é uma das grandes criações da humanidade.
- MRA: No flamenco, como na própria vida, há ao menos duas faces: a da tristeza e a da alegria. Qual Carmen Linares crê que esteja mais na moda hoje, e por quê? O flamenco é influenciado, hoje mais do que nunca, pela ideia de mercado?
Eu adoraria que o canto clássico permanecesse para sempre, mas não podemos parar a criatividade, o futuro, a evolução, a imaginação humana. No cante, a face da alegria sempre foi melhor recebida, compreendida e apreciada que a da tragédia, mais difícil de digerir. O cante jondo dói, busca uma espécie de ouvinte paciente e cauteloso. Hoje tudo está indo muito rápido. Eu entendo que artistas jovens queiram ser reconhecidos, bem-sucedidos, ganhar dinheiro, tornando o flamenco menos “apretao”, como dizemos no meio. Isso é humano e acontece em outras atividades profissionais. No entanto, ao artista bem organizado, que tem um conceito claro, que conhece seu lugar, seu estilo, não precisa desviar-se. Independente do tempo, da moda ou dos abusos do mercado, o flamenco sempre manterá sua identidade, sua marca própria. Apesar das dificuldades, muitos jovens artistas estão defendendo o flamenco, nosso flamenco, com sinceridade, qualidade e inteligência. Acredito que o flamenco reflete, como diz a letra de José Luis Ortiz Nuevo, que canto em um de meus álbuns com Miguel Poveda, “La vida que conocemos, la vida que tanto amamos, con sus horitas de dulce y sus finales amargos”. O flamenco está vivo e evoluindo com o tempo, mas sempre haverá tristezas e alegrias.
- MRA: Essas duas atitudes em relação à vida aparecem em muitos temas abordados pelo flamenco ao longo de sua história. O tema da justiça, por exemplo. As letras flamencas têm tanto medo da justiça quanto da injustiça: ambas são capazes de tudo. Isso é para sempre, ainda é hoje. No entanto, nem os cantaores (nem as cantaoras) souberam tirar proveito da situação atual, que é uma mina de onde podem extrair tesouros. E há mais minas não exploradas. Como Carmen Linares explica isso?
Acho que é realmente uma vasta mina, e tenho certeza de que, no futuro, ouviremos mais letras sobre esse assunto. De qualquer forma, não é tão fácil adaptar e interpretar letras desses temas pela métrica e estrutura dos cantes.
- MRA: Esta pergunta se liga à anterior. Por que os cantaores e as cantaoras de flamenco se especializaram em aparecer, com algumas exceções, como “politicamente corretos”? Eles abandonaram o tema do descrédito do estabelecido, tão inerente ao flamenco? Ele sempre foi mais do que um rebelde: foi um desajustado. Ainda é hoje?
Acredito que no flamenco existem muitas letras que expressam o sofrimento e a angústia do povo. O que acontece é que é preciso escutar, e fazer uma leitura correta dessas letras populares. Há uma letra popular por tarantas que diz: “Ay Dios Mío a donde vamos, tantos inventos pá ná, y quien más tiene más quiere, para subirse en los demás, y el que caiga que cayere”. Eu a cantava no início dos anos 1960, e continuo cantando até hoje. É uma letra que possui uma grande verdade e sempre vai estar viva. O flamenco é um reflexo da vida em todos os sentidos.
- MRA: Mais de uma vez, ouvindo os cantaores antigos, lembrei-me da “castigada vida sombría de aquellas gentes enigmáticas que se expresaban con el cante, con el grito como purificación”, como disse Lorca. Aquele grito se transformou-o em rito e música, tornou-se uma das verdades essenciais da vida, e se reuniram para celebrá-lo. Esse grito, esse rito, são hoje puro espetáculo? Ainda resta algo de tudo isso?
Acredito que tudo permanece. Este ano estou comemorando meus quarenta anos de carreira, e em meu espetáculo há momentos de rito, como os seguiriyas com letras de José Angel Valente ou bamberas com letras de Miguel Hernández que são complementados por momentos de autêntico show como tangos com letras de Federico García Lorca ou as alegrias de Cádiz. Tudo como um todo faz com que o público sinta diferentes sensações no concerto, sentimentos de pura emoção ouvindo um cante por soleá ou uma dança através de bulerías. Isso ocorre porque eu e meus músicos sempre nos dedicamos ao máximo e expressamos o flamenco do coração.
- MRA: A cantora La Perla de Cádiz nos deixou uma bela frase: “El flamenco no tiene caminos marcados”. Como nas outras artes, o flamenco evolui de dentro, com uma cadeia de cantaores e cantaoras, que o praticam distintamente porque têm seu próprio estilo e assim o enriquecem. Então o tempo se impõe, sentencia e impera. Hoje se forçam as misturas e se chama de fusão o que não é. Inventa-se o que é preciso para vender e encher a burra. O assunto foi mencionado na imprensa espanhola há alguns anos pelo escritor Muñoz Molina. Você percebe, Carmen, essas misturas apressadas, precipitadas do flamenco?
Certa feita, o grande violonista flamenco Manolo Sanlucar me disse: “se se conhecem bem os cantes e as raízes do flamenco, não há que temer a fusão com outras tradições, a fusão é natural. Essa música nova terá que soar natural ante o público e os artistas. Se é “natural” mas de má qualidade, será esquecida”. O flamenco é uma arte viva, que evolui com o tempo, e não faz sentido cantar como os cantaores dos anos 1920, porque eles não viveram nosso tempo, viveram seus próprios problemas, da sua época. No meu disco Antología de la mujer en el cante recrio e homenageio cantaoras antigas, mas interpreto os cantes do meu jeito e de uma maneira atual; e quando as jovens cantaoras de hoje o fazem, o fazem a seu modo singular, ainda que tenham ouvido o meu cantar.
Discografia de Carmen Linares http://carmenlinares.net/category/discografia/
Glossário:
A palo seco: cante flamenco sem acompanhamento de guitarra (a capella).
Bailaor, bailaora: dançarinos de flamenco que acompanham o cante.
Bambera ou bamba (“balanço”): uma das formas de cante com marcação rítimica particularmente cadenciada.
Cantaor, cantaora: os cantores de flamenco.
Cante: o canto flamenco.
Cante jondo: literalmente, “canto profundo” (jondo é uma variação do espanhol hondo, fundo), também dito “cante puro”; refere-se à respiração e à articulação sonora mais características do flamenco.
Copla: união, vínculo, daí, estrofe, normalmente de quatro versos, e geralmente em octossílabos, mas também em redondilha maior, com rimas alternadas assonantes; forma poética cristalizada no século XVIII que migrou para a canção popular espanhola.
Fandango: canto e dança em compasso ternário, acompanhados de guitarra e castanholas.
Guitarra: o violão clássico europeu, afinado, empunhado e tocado de modo peculiar (por exemplo, a técnica do “picado flamenco”, em que se beliscam as cordas em vez de tangê-las), o que justifica a referência “guitarra flamenca”
Palmas: acompanhamento habitual do cante flamenco; há vários tipos: abafada (surda), dobrada (redoblás), natural etc.
Palmero: o acompanhante do cante com palmas.
Palo: o canto em si; as várias formas de se cantar o flamenco (ver “a palo seco”).
Seguiriya: um dos mais jondos dos cantes, um dos mais antigos, de marcado caráter dramático, com letra curta e queixas e angústias profundas: “ayes” (ay, ay, ay).
Soleá: uma das formas mais antigas e básicas de cante (chamada de “madre de los palos”), acompanhada apenas de uma guitarra.
Taranta: cante em compasso 4/4, com marcada influência levantina (cigana, moura e judaica).
– web oficial: www.carmenlinares.net
– youtube: CarmenLinaresYoutube
– wikipedia portugués: CarmenLinaresWikipedia
A LUZ DA PALAVRA
Manuel Ruiz Amezcua
Para Carmen Linares.
Para sua voz, que agrega luz à palavra.
E para Miguel Espín.
Há tantas coisas não ditas
com a clara luz da palavra…
E na espera pelo espírito
da carne que o dilacera.
Na amargura da verdade
correndo o sulco da lágrima.
Nas pegadas que palmilham
pelas terras que separam.
Na boca que não se queima
na labareda que a abrasa.
Em tudo que se inicia,
em tudo que não se acaba.
Na linhagem sem coragem
que sempre nos acompanha.
No corpo sempre traído
pelo sangue a arrastá-lo.
E na injustiça tamanha
com que o mundo se levanta,
carregando, soterrado,
o fardo de tanta carga.
Há tantas coisas não ditas
à clara luz da palavra.
Em tanta piedade límpida,
tanta sombra que se espalha.
Tantos segredos antigos,
tanta teimosia amarga.
E na herança da carne
o prazer e sua vingança.
Um caminho interminável
de consciência marcada.
(trad. Luis Dolhnikoff)
LUZ DE LA PALABRA
Para Carmen Linares.
Para su voz, que añade luz a la palabra.
Y para Miguel Espín.
Hay tantas cosas no dichas
con la luz de la palabra…
En la espera del espíritu
por la carne que lo araña.
En la hiel de la verdad
por el surco de la lágrima.
En las huellas que caminan
por la tierra que separan.
En la boca que no arde
en el fuego que la abrasa.
En todo lo que comienza
en todo lo que no acaba.
En el linaje cobarde
que siempre nos acompaña.
En el cuerpo traicionado
por la sangre que lo arrastra.
Y en tanta, tanta injusticia
con que el mundo se levanta,
llevando a rastras, hundido,
el fardo de tanta carga.
¡Hay tantas cosas no dichas
con la luz de la palabra!
En tanta piedad sin mancha
tanta sombra proyectada.
En tanto secreto antiguo
tanta obstinación amarga.
En la herencia de la carne
el placer y su venganza.
Un camino inacabable
de conciencia profanada.