E O MUNDO LATEJA
Caderno Idéias & Livros
Sábado, 28 de julho de 2007
Jornal do Brasil
E O MUNDO LATEJA
Felipe Fortuna
Na canção “Haiti”, de 1993, Caetano Veloso escreveu sobre o episódio mais marcante do Carandiru: “E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina / 111 presos indefesos / Mas presos são quase todos pretos / Ou quase pretos / Ou quase brancos quase pretos de tão pobres / E pobres são como podres / E todos sabem como se tratam os pretos.” Em 1968, no auge do Tropicalismo, a sua canção “Alegria, Alegria” explicava: “O sol se reparte em crimes / Espaçonaves, guerrilhas / Em Cardinales bonitas / Eu vou.” Trago as duas citações com grande cautela para um comentário sobre o livro Página Órfã (Martins Fontes, 135p., R$29), de Régis Bonvicino, uma vez que a interpretação de uma coletânea de poemas pela via da canção popular quase sempre acaba em equívoco. Ocorre, porém, que a poesia agora oferecida no livro – escrita entre 2004 e 2006 – parece orientada por dois eixos principais e semelhantes aos daquelas canções: uma avaliação soturna e pessimista sobre as relações sociais e suas repercussões políticas; e uma saturação estética, mas igualmente política, dos fenômenos de cultura de massa, que quase sempre assume dimensão de denúncia em sua poesia.
Em Página Órfã percebe-se a convergência de muitas linguagens – não apenas a da canção popular, mas a da publicidade, do jornalismo sensacionalista e da referência erudita, por exemplo. Se na canção “Haiti” Caetano Veloso escreveu sobre soldados, “quase todos pretos / Dando porrada na nuca de malandros pretos / De ladrões mulatos”, Régis Bonvicino, no bom poema “Rascunho”, escreve sobre o linchamento de um mendigo: “Pauladas não há palavras / morto a pauladas não há palavras / para dizer morto / a pauladas (…) / enquanto isso aqueles que / / se locupletam com o caso / sem pistas / não há palavras / morto a pauladas.” Traduz-se dessa forma hiperrealista e praticamente destituída de metáforas a poesia de Régis Bonvicino, cujo ritmo sincopado é uma imitação da violência. Essa poesia transmite o que João Adolfo Hansen, no posfácio ao livro, chama de “o presente da vida capitalista”, a “barbárie kitsch” e “o evangelho do feio”. Tudo isso é correto, ainda mais se somado a um método de enumeração que tem filiação com o melhor do Tropicalismo. É possível que muitos dos poemas de Régis Bonvicino estejam à espera de música, já que escritos numa forma por vezes alusiva à canção de protesto, por vezes ao manifesto da indignação, mas sempre à depredação dos valores mínimos da convivência e do pacto social.
Nesse sentido, Página Órfã é um livro de eloqüente natureza política – e, saliente-se, concebido como objeto político, paradoxalmente obcecado pela falta de importância (ou pela impotência) da poesia na vida social. É estimulante perceber a identidade e as diferenças desse livro com o conjunto de poemas nos quais Ferreira Gullar também transmite o seu mal-estar e a sua repulsa em relação ao embrutecimento humano, seja no cárcere do exílio ou na falsa liberdade do seu país. Existe no poeta maranhense um sentimento local e uma dimensão utópica que o poeta paulista, mais jovem e dotado de outras informações, converte em sentimento transnacional e em negação de qualquer utopia: como se não existisse o mundo melhor, e sim o mundo perdido. Essa característica de Régis Bonvicino é marcante, por exemplo, no poema “Definitions of Brazil”, escrito em inglês com a colaboração de um poeta norte-americano, Charles Bernstein. As numerosas tentativas de definir o país, em versos repetitivos, têm o efeito da ironia, do projeto impossível, da percepção deslocada do seu centro, dos erros de interpretação que, de algum modo, podem ser válidos, quando não verdadeiros: “Brazil is located on the southern tears of the Americas (…) Brazil has no relationship with itself because it has relation only to itself (…) Brazil is not emerging it´s proliferating (…) In Brazil, the real is the only currency that counts” (que eu traduzo: “O Brasil está localizado nas lágrimas sulistas das Américas (…) O Brasil não tem relacionamento consigo mesmo porque só tem relação consigo mesmo (…) O Brasil não está emergindo está proliferando (…) No Brasil, o real é a única moeda que conta”. O leitor deve estar preparado para os variados recursos ao trocadilho nesses poemas – tears, além de lágrimas, são também defeitos, rasgos ou mesmo cóleras –, bem como para a torrente de informações e de alusões que os poetas retiram não apenas da linguagem, mas daquela saturação já mencionada que produz objetos díspares, inesperados e estranhamente densos e lúcidos como o próprio poema.
Em Página Órfã também persiste um ataque cerrado à sociedade de consumo. Provavelmente o leitor acostumado às investidas de um Theodor Adorno em Minima Moralia (1951) (por exemplo, “a felicidade é obsoleta: não-econômica”, ou ainda “a vida se transformou numa sucessão intemporal de choques, intercalada com intervalos vazios e paralisados”, entre tantas outras) não terá surpresas ao defrontar os poemas que agridem, em movimento de reação, as grifes mais famosas, o conceito injustificado de celebridade, as modelos que se chamam Kate Moss ou Diana Dondoe, os conjuntos juvenis de rock, os shopping centers e toda a parafernália capitalista. Em “Bagatelles”, o poeta busca defender-se dos ruídos e das interferências que o impedem de usufruir a alta cultura, o que acaba por afligi-lo à exasperação: “ajuste depressa a freqüência / para não perder – ao menos – / o último movimento“.
O novo livro de Régis Bonvicino é um acréscimo significativo à lírica brasileira: não existe escape para o pieguismo, nem concessão a formas fixas. Resolutamente, o poeta abandona o questionamento sobre tradição e ruptura, que tanto permeia a obra de poetas ainda jovens, e entrega ao leitor o núcleo duro de um desencanto. Haverá ainda espaço para que perguntem: trata-se de um livro moralista? No impactante poema “Deus”, que espécie de adoração existe? Nesse livro difícil de Régis Bonvicino (cujos temas se mesclam, como se quis mostrar, com a canção popular e com a alta filosofia), o poeta mal escapa do pesadelo de jamais alcançar o sublime. É poesia rara de um mundo que lateja: o melhor é conhecer os dois antes que acabem.