por Marcus Fabiano
O discurso identitarista sequestrou robustas desigualdades por um autêntico mercado da diversidade pretensamente inclusiva. Eis mais um sintoma do pseudomarxismo culturalista no seu desempenho distrativo das inteligências potencialmente mais ameaçadoras em termos transformacionais. Portanto, não é nada gratuito que seu campo de disseminação seja exatamente o espaço universitário, com suas chancelas acadêmicas e suas “epistemes” para lá de discutíveis. Tal quadro logo precipitaria certos ativismos cujos protagonistas, em regra, jamais registraram qualquer vínculo com militâncias anteriores ao advento de seus avatares virtuosos nas redes sociais. Essa curiosa circunstância, assim digamos, contemporânea, aliou-se às facilidades editoriais antes indisponíveis, conduzindo a criação, inclusive poética, a uma extraordinária massificação de imposturas ideológicas ávidas pela visibilidade em um espaço virtual forjado por controles e simulacros. Uma nova performance aí encenava seu número há muito conhecido pelos investigadores da consciência moral: a busca pela capitalização dos efeitos secundários da bondade. Ocorre, entretanto, que até o mundo das artes se fez infenso às reformas por diatribes literárias, isso para gáudio das lavanderias dos mecenatos e desgraça das iniciativas universalizantes no terreno da educação pública. Entre os silêncios e as conveniências de um gregarismo organizado pelo sistema de dom e contra-dom, vetustas linhagens de elites recredenciaram-se no comércio do entretenimento, recrutando justamente nas humanidades sua mão de obra barata e vaidosa a fim de conservar uma dominância pajeada por a(u)tores anódinos, clientes fiéis e assegurados herdeiros. É o bom negócio sem o desconforto da má consciência: terreno do iludido e do camelô de si mesmo trabalhando em prol da própria precarização.
Contudo, um outro movimento, socialmente perverso, simultaneamente corresponde a esta dinâmica acima descrita e mais ou menos asfixiada por sua própria irrelevância. Refiro-me à alta degradação das subjetividades que encontra no massacre da exclusão social uma de suas principais causas. E este é um fenômeno que vem ocupando um espectro disciplinar que compreende de filósofos da economia a neurocientistas, vez que sua complexidade ultrapassa a simples pobreza econômica expressa na insuficiência de bens ou renda. Ao acumular múltiplos efeitos deletérios, a exclusão social atua erodindo identidades intersubjetivas assentadas na mutualidade da confiança cooperativa, alcançando a devastação psíquica da auto-representação e convertendo-se na contrapartida mais escandalosa dos referidos avatares virtuosos do mundo virtual, esse luxo cognitivo capaz de estatuir para si & os seus todo um planeta dos super-representados, com pleno direito aos pré-moldados dos clichês opiniáticos e ao encanto de suas figurinhas marqueteiras de pujante hipercorreção moral.
Nessa contraparte alarmante, toda uma ecologia da subpobreza se faz habitada por miserandos e errantes, dentre os quais inúmeros irrecuperáveis. São seres desassistidos por quaisquer redes de segurança social, daquelas tipicamente orientadas pela compaixão reparacionista tardo-demagógica (logo: pouco eficaz em termos massivos) ou pela total indisponibilidade para se realizar inversões primárias de larga escala (ou seja: além do alcance geracional de um mero ciclo eleitoral).
De muitos modos a poesia brasileira tentou dar conta desse espectro de mendigos, lumpens, indigentes, cracudos e incalculáveis gêneros de moradores de rua cujas biografias foram reduzidas a um anonimato tristíssimo e absorvido por paisagens de frenética indiferença. Ora são delinquentes que realimentam o estereótipo da periculosidade urbana guardada por carros blindados e cercadinhos VIPs, ora são a derrota prostrada dos que sobrevivem liquidados pelo chão, sob marquises, entre sacos plásticos, abas de papelão ou suplicando esmolas e outras caridades oriundas do varejo governamental ou do altruísmo cidadão. O fato é que tais pessoas desceram muito abaixo da linha do subemprego e não puderam recobrar em si ou na sociedade ao redor as energias vitais para resistirem à associação arruinante entre o vício e o abandono, o torpor da dependência química e a crueldade do desamparo.
Enxergo aí duas grandes correntes de abordagens poéticas que procuraram dar conta desse quadro. A primeira delas pertence à alta literatura: tem raízes no pós-vanguardismo, construindo-se como resíduo de subsistência crítica em um espaço de falsos dândis digitais. Falo da poesia de Régis Bonvicino, eco especular de um ultrassom que revolve camadas de caos urbano para recobrar-se perplexo, atônito e, talvez acima de tudo, enojado pelos limites da própria impotência indignada. É uma poesia de tambor, culatra e cartuchos deflagrados. E do manejo de seu gatilho, nem deus sabe. Régis enxerga na combustão dos cristais de crack alguém se servindo de cachimbo ou narguilé. E quando “o anu bica o olho do noia”, fotografa esse personagem que cata alguma pedra no meio do caminho das cracolândias. Sim, o noia: gíria ainda carente de dicionarização mas perfeitamente incorporada ao léxico citadino de quem testemunha o estado demencial da constante paranoia dos viciados andrajosos e obsessivos na busca de algum cristal extraviado por outros usuários. Do seu recente libreto Deus Devolve o Revólver, de 2020, seleciono então o poema-faixa Haiku, cuja íntegra se lê abaixo antecedida pelo trato sonoro realizado pelo artista multimídia Rodrigo Dario. Nessa faixa do álbum que acompanha a obra escrita de Régis, ouve-se uma voz pausada e clara, todavia perceptivelmente remanescem em seu timbre fundos de fadiga e desalento.
A segunda abordagem desse universo da exclusão social provém de um terreno que lhe é muito mais próximo e familiar. Ela engendra uma irreverência cáustica capaz de samplear o fino da bossa das Águas de Março de Tom Jobim (na voz de Elis Regina) para introduzir uma surpreendente ironia diante dos mortificados. Falo aqui do estrondoso sucesso alcançado pela mixagem do trio Bonde do Rolê intitulada Fumano Crack, de 2012. Nessa composição multiautoral o conjunto serviu-se das seguintes bases: Tô usando crack, de MC Carol; Tá Cagada, de MC Dadinho; Vai Cracudo vs. Vai Cracuda, de Deeejay Daniel; Tu tá Cracudo, de MC Alexandre; e Relaxa no Crack, de MC Bahiano. À diferença da obra de Régis Bonvicino, esta não é uma poética do revólver, mas sim do fuzil. E ela guarda o baile funk como reduto de diversão e consumo relativamente permeável ao personagem do cracudo. O predomínio do funk é aí entrecortado por hits sertanejos e fingidas admoestações neopentecostais, colocando-se a maconha recreativa em paralelo com o “copinho de Guaravita” usado pelo maltrapilho magérrimo e imundo que vendeu o pouco que tinha para “relaxar no crack”. Como não bastasse, ainda se zomba da viciada que “fica suave” e desce até o chão em plena incontinência intestinal: “toda cagada”. O efeito dessa combinação sonora e poética é simplesmente avassalador. E sequer faltou quem visse nesse torpedo de denúncia e derrisão iconoclasta uma apologia ao uso de drogas ainda mais pesadas: “use crack que é mais light”.
Os versos apurados na longa trajetória do poeta e editor Régis Bonvicino ou a estrondosa mixagem dos jovens do Bonde do Rolê? Estão abertas as vias de cotejo, comparação e complementariedade entre estas duas poéticas cujas perspectivas nascem de pontos de fuga distintos a respeito de um mesmo objeto. Gostaria de aqui também tratar da urgência dos consensos demandados face a estados tão flagrantes de injustiças sociais. Contudo, e muito infelizmente, cada vez mais parece que as minguadas energias emancipatórias da dita “classe artística” foram drenadas por um circuito de imposturas ideológicas e fisiologias dissimulantes que tudo imobilizam em um ludismo medíocre e presunçoso na sua comiseração sem consequências. Diante disso, é até natural que as produções resultantes de um tal contexto sejam integralmente reunidas sob uma mesma rubrica genérica do oportunismo panfletário. E caso tal nicho já se constitua mesmo em uma nova singularidade de nossa miséria estética, convirá lograr a respeito dele, e para quem puder, alguma lucidez.
HAIKU
Pedra no cachimbo
Estação da Luz: porrada
Verão, sol lilás
Pedra, narguilé
Doce como mel: porrada
Verde, o sol âmbar
É o Incrível Hulk
Um avião nos pés: porrada
Janeiro, sol púrpura
Uns tragos na lata
De asas já nos pés: porrada
Março, sol turquesa
Cachimbo, cristal
Braços alados, porrada
Março, um raio fúcsia
Lata sem anel
O anu bica o olho do noia
Isqueiro na dobra
Pedra no cachimbo
Arco-íris nos pés, porrada
Dezembro, sol sépia
Canudo, Yakult
Mãos lixam o céu, porrada
Março, sol magenta
Cachimbo na roda
Garras de tigre, porrada
Janeiro, sol jade
Em nome de Buda,
Nada obstante uma brisa
Verão, sol sem cor
Cavalo, porrada
O tubo de pvc
Outono, sol ágata.
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O mix Tô fumano crack, do Bonde do Rolê: