Tomaz Amorim analisa o novo livro de Régis Bonvicino, “Deus devolve o revólver”. “Estão presentes neste livro as multidões de viciados em craque, de moradores de rua, de carroceiros, de prostitutas. O cenário muitas vezes é a própria Cracolândia e os arredores da Luz. Sem abrir mão do cuidado estético, pincelando elementos cotidianos, mas representativos, com apelo ao detalhe material, Bonvicino fortalece a literatura religando-a ao seu território. Sem amaciar na dureza da representação, ele opera com isso uma reaproximação, a literatura não foge, mas se debruça sobre a cidade. A cidade, por sua vez, se manifesta através do texto. Não deixa de ser uma maneira de nomear o inominável – a Cracolândia falada em versos – pressuposto fundamental para sua transformação”.
“Deus devolve o revólver” (2020) é o trabalho mais recente de Régis Bonvicino, poeta veterano que começa a escrever depois da Poesia Concreta, dialogando com o Tropicalismo, vencedor de prêmios importantes no Brasil e traduzido em diversas línguas no mundo. Publicou em 2010 a coletânea “Até agora: poemas reunidos”, pela Imprensa Oficial de São Paulo, em 2013, Estado Crítico e em 2017 Beyond The Wall (publicado nos EUA). Este trabalho que comentamos agora, apesar de funcionar muito bem como volume à parte, reúne 16 poemas inéditos que farão parte do livro futuro “A nova utopia”, em progresso desde 2014. Apesar da trajetória, que o coloca em papel de destaque na cena brasileira das últimas décadas, Bonvicino segue experimentando e o formato com suporte duplo, literário e sonoro, deste trabalho já aponta para isso. Os poemas foram todos gravados no estúdio da De Lírio Records no ano passado e foram publicado neste ano como se fossem “um libreto de ópera”, segundo o autor, pela editora Daikoku de São Paulo. Há também uma versão em e-book, publicada pela “e-galáxia”. O álbum pode ser ouvido no seguinte link: https://deliriorecords.bandcamp.com/album/deus-devolve-o-rev-lver. Depois da crítica, reproduzimos dois poemas do livro.
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Encontramos já no primeiro poema, “A nova utopia (1)” – parte de uma série que, imaginamos, se completará no livro futuro – as preocupações estéticas e políticas que ressurgirão de maneiras variadas no livro, sempre recolocando a mesma questão de um tipo de decadência estético-política. Este “novo”, que faz imaginar um “velho”, não dá conta. O livro é uma lamentação sarcástica, dura, dessa incapacidade, sem a ingenuidade de se ver fora do problema. A acusação que se faz, colocada do ponto de vista da decadência presente, não deixa a própria expressão de fora. Como diz Alcir Pécora, no prefácio da edição escrita: “Ninguém está a salvo, muito menos o poeta”.
Os poemas vão revelando e ao mesmo tempo mantendo uma certa desconfiança diante de tudo, desconfiança que flerta, no limite, com o cinismo diante daquilo que chama de “novas utopias”. Misturando demandas e palavras de ordem de movimentos variados, Bonvicino faz tudo colapsar em um amontoado de ecos que não está muito longe do que se transformou, por exemplo, Junho de 2013, depois de sua tomada pelos conservadores. A crítica parece recair sobre a “boa consciência”, tão obrigatória, quanto inútil. É o tribunal do Facebook (como disse Tom Zé) no banco dos réus. Seu pincelar de bandeiras e slogans muito específicos joga com humor ácido sobre uma certa pretensão de pureza, de tom autoritário, que quer normatizar os outros, esquecendo-se quase sempre das próprias contradições. É o politicamente correto colocado para falar consigo mesmo, a eterna denúncia “contra o obscurantismo dos outros” dirigido de volta a estes que acusam. “Na saída do shopping militantes coletam assinaturas para um manifesto em favor das abelhas”. Diante deste apocalipse cotidiano, essa é a resposta política, essa é a pálida utopia que se oferece?
O leitor inicialmente se pergunta se está diante de uma crítica conservadora ou de uma crítica radical aos liberais tornados conservadores. Faz diferença? Em um país que viu o anti-petismo (de esquerda e de direita) ser transformado em bolsonarismo, como num passe de mágica, a pergunta tem relevância. A menos que a resposta, política e estética, seja sempre um tipo de reformismo. A insistência no desmascaramento do café descafeinado, do radicalismo conformado, parece ser justamente uma tentativa de resgatar algum tipo de ideal de transformação. Jogará o bebê junto com a água suja? Resta algo? O que entra no lugar da “nova utopia”, colocada no lugar justamente de uma velha (de 68?), que não opera mais?
Mais adiante lemos: “A nova utopia é um ex-esteticista de unhas postiças. É um espião trans pegando sol num roteador”. Esses versos são bons exemplos do procedimento paratático que parece orientar a estética geral do livro. Tratam-se justaposições de elementos de origens semânticas distintas, colocados em relação estranha que, por isso, também os ilumina com uma luz diferente. Um espião trans. Alguém terá pensado sobre a questão de gênero na espionagem? Qual a relação? Será a transformação? Será a vida como cidadão de outra “nação”? O que esta figura empoeirada do século passado tem a ver com esta partícula hiperpolitizada, ponta de lança da revolução de gênero, nossa contemporânea? Sua atividade promove o mesmo choque: ele pega sol, disfarçado, talvez, em missão, não em Copacabana, mas dentro de um roteador. Foi circuitizado, se transformou em bytes, será um software (não mais transgênero, portanto, mas transhumano) interceptando uma mensagem? Nada disso diz muito, o leitor, espião iniciante, não tem a chave criptográfica para acessar completamente o verso. Algo, no entanto, acontece, a montagem entre estranhos, como dito, reilumina os termos, o espião é atualizado no século XXI, a transformação historicizada como acontecimento recorrente na história da humanidade.
A sonoridade do álbum que acompanha o libreto é fascinante e seu responsável é Rodrigo Dário. As distorções na voz acompanham na medida justa o estranhamento do texto sem perder nada de sua clareza. O jogo com sintetizadores repete técnicas de vanguarda do século passado que ajudam a criar a atmosfera distópica que também se repete cem anos depois. É música eletrônica misturada com baixos de rock n’ roll clássico.. Depois da primeira vinheta, em tom grave de rádio antiga (“Rádio Globo” e/ou “Rádio Libertadora”), “boa noite, deus devolver o revólver”, os sons vão e vêm neste título, como barras no visor de um equalizador, “de-us” aliterando com “de-volver”, de-volver voltando em re-vólver, este “ó” demarcando a meia-volta volver, de novo para algo que deus deu, tomou de volta e que se quer: o revólver. Escondida nesta miniépica, a criação do mundo, a queda (Abel metendo bala em Caim), a saída de Deus e dos mistérios do mundo e a busca humana por um poder próprio ou pelo retorno da regulação divina. Anti-orações a um deus que tem um revólver. Tudo bastante carrancudo e trágico não sobrevivesse no meio do título, quase como provocação, uma “canção dos Beatles”: devolver o revólver, de “love, love, love”…
O primeiro poema depois da vinheta, “Ficção” confirma a localização histórica destes poemas. Eles estão entre o fim das utopias velhas e o que quer que sejam as novas. Estamos no DOPS (hoje Memorial da Resistência de São Paulo), no Largo General Osório, centro onde os militares torturavam os militantes das velhas utopias. O poema não é explícito, ao invés de pecar pelo naturalismo, opta por costurar fragmentos de relatos, brutalidades inomináveis dos torturadores, com as otimistas manchetes de jornal sobre a economia e platitudes da vida comum embaladas pelos ié-ié-iés do rádio. O passado colonial da cidade, a riqueza do café encarnada na Estação da Luz, parede a parede com a câmara de tortura. A discrepância das imagens, sua aproximação estranha no poema ajuda a revelar sua contiguidade material, histórica e política. “O PIB vai a 10%” e baratas na vagina, dois lados da mesma moeda, mantidos separados no discurso político oficial, religados pelo poema com o choque da revelação. É perturbador também porque ao invés de ouvirmos apenas o “patético” dos gritos e choros (como o melodrama político costuma fazer) ouvimos, entrecruzada junto aos outros fragmentos, a voz do torturador falando em imperativos: “quebra as vértebras dessa puta”, “pode pisar neles”. Há nesta aproximação uma quase cumplicidade que produz invariavelmente como efeito estético o asco. Poema, portanto, muito bem sucedido. O último verso é a síntese irônica do poema e do Brasil, país açucarado na musicalidade, país da escravidão e das ditaduras: “o corpo do cara ficou odara”. O que a música de Caetano coloca como projeto utópico para uma outra corporeidade é rebaixado pela brutalidade reacionária da ditadura: contra a utopia do corpo místico e dançante, o corpo torturado reduzido a cadáver. A justaposição estética é brutal e seria inverossímil, perversa, não fosse relato histórico. Os dois níveis se misturam brutalmente.
“Deus devolver o revólver” também é interessante por tomar a cidade de São Paulo (não a da Avenida Paulista e da Faria Lima, mas a do Centro antigo) como cenário, retomando assim a tradição de Mário, Oswald, Piva e tantos outros. Nós que moramos nesta cidade nos deparamos com ela, novamente, transfigurada, ou melhor dizendo, revelada em suas contradições quase insuportáveis para o olhar cotidiano. Estão presentes neste livro as multidões de viciados em craque, de moradores de rua, de carroceiros, de prostitutas. O cenário muitas vezes é a própria Cracolândia e os arredores da Luz. O problema, no entanto, não é só daqui, calhou desta vez em ser aqui, mas cada lugar do presente parece guardar seu pesadelo apropriado e semelhante. O poema “Da janela do quarto”, por exemplo, mostra o Rio de Janeiro em sua síntese: Bossa Nova nightmare. Sem abrir mão do cuidado estético, pincelando elementos cotidianos, mas representativos, com apelo ao detalhe material, Bonvicino fortalece a literatura religando-a ao seu território. Sem amaciar na dureza da representação, opera com isso uma reaproximação, a literatura não foge, mas se debruça sobre a cidade. A cidade, por sua vez, se manifesta através do texto. Não deixa de ser uma maneira de nomear o inominável – a Cracolândia falada em versos – pressuposto fundamental para sua transformação. Trata-se, pelo negativo, de um tipo de utopia (velha ou nova, não se sabe) no campo da estética que não abriu mão de se dizer, por piores que sejam as condições.
O poema “Tarde”, composto de uma única estrofe, com versos livres, também é uma descrição paratática de elementos típicos de nossa feitura social. Na primeira parte, misturam-se detalhes urbanísticos, arquitetônicos, climáticos. Pessoas passam nestes locais de passagem onde, no entanto, outras pessoas moram. A “mendiga negra” repete a tradição literária da “passante”. Mas se a reclamação de Baudelaire era de uma Modernidade que se instalava, por aqui, no terceiro mundo, a reclamação talvez seja justamente a oposta, a promessa da modernização, para bem ou para mal, que nunca se concretizou. Assim, a passante mendiga não se destaca do plano da cidade, como lembrança do passado perdido ou possibilidade de outro futuro, mas compõe com ela sua desolação presente, é sua representação mais direta, metonímica quase, promessa de que tudo continuará como está. E junto a ela, ainda, um outro elemento inaugura a segunda parte do poema marcada pelo verso de uma única palavra: “dorme”. Este alguém (ou algo?) que dorme, “estirado a uma certa distância da entrada”, nunca recebe a dignidade de um substantivo. Sua invisibilidade vocabular é como sua invisibilidade social nas ruas, novamente, sobreposição precisa entre representação estética e política. Sabemos dele ou dela que é pobre, sua posição no chão, a indumentária, os calçados, e só. Ninguém o vê, salvo talvez o poeta, enquanto ele dorme, no meio do tudo e no meio do nada, numa tarde urbana qualquer. O poeta o vê e diz que não há mais “spleen”, só “porrada”. À delicadeza de uma melancolia diante da demolição do velho mundo, a crueza quase cínica diante do cotidiano do “novo”.
Em “Perspectiva” também aparece “um cara estirado”. O procedimento é semelhante, detalhes arquitetônicos, a vida morosa, o mormaço da cidade vai sendo descrito ao redor destas figuras, em um tipo de inversão irônica e/ou utópica. Neste livro, os marginais ocupam o centro da cena. Anônimo como os outros, ainda assim, com nomeação parcial, ele é um tipo paradoxal de personagem principal invisível. A ele são dedicados os últimos versos e a referência metalinguística: perambulam, infinitos, dos poemas para as ruas, das ruas para o poemas. Esta forma do mendigo dormindo no meio da cidade e do poema, no meio do caminho dos pedestres burgueses, e dos seus pares leitores, se repete em poemas diversos como “Retrato”, “Trailer” e “Áudio”. Estão quase sempre dormindo, sendo observados por esta voz, emoldurados pela feiura da cidade.
Haveria muito ainda a dizer, mas preferimos esperar pelo volume completo e futuro de “A nova utopia”. Sabemos bem que mesmo o ausente tem força de revelação (e estes poemas sujos são dirigidos a ninguém menos que o “deus” do título). Enquanto se escreve, se espera, por mais que a redenção apareça na imagem improvável de um revólver. As imagens que esta literatura evoca não são agradáveis, mas têm o mérito de serem presentes. Não como o jornal do dia é presente, mera repetição disfarçada, mas presente no raro sentido estético, de capturar e organizar os invisíveis cotidianos, antecipando assim também já os seus futuros possíveis. Por isso a tradição literária também é mobilizada no livro, de Rimbaud a Augusto dos Anjos. No poema “Haiku”, o mais sublime da tradição literária japonesa é profanado, rebaixado, atualizado (e assim, apesar de tudo, transformado em algo efetivo, não mera fruição estética). Um verso diz: “O anu bica o olho do noia”. Neste Bashô rebaixado, a imagética e a forma secular do haikai, seu instantâneo de uma constelação natural-temporal, são colocados à serviço de uma representação social do presente mais abjeto e mais cotidiano. O olhar sobre algum detalhe artificial (o plástico, o isqueiro, o cachimbo de craque) é apresentado em uma paleta solar estranha para ser confrontado em seguida com a porrada: como um haikai visto num filme fotográfico, negativo contra o sol. O poeta, com seus subterfúgios literários, insiste em abrir nossos olhos já muito amortecidos, pela milésima vez, para um presente que não é fácil. Novamente, nomear o que está aí é o primeiro passo para que algo mude. (Sem desconsiderar o risco disso tudo isso ser apenas novas estrofes da já velha “nova utopia”).
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Ficção
Pendurada de cabeça para baixo
via ao contrário a coluna em estilo coríntio
da antiga estação de trem
o poder político dos estoques
as sacas de café, Bolsa de Nova York,
camionetes queimadas
um som adocicava o Largo
talvez fosse o de uma nova canção dos Beatles
“Metralhado e morto outro facínora”
você com essa cara de filha de Maria
uma paulada na coluna
quebra as vértebras dessa puta
boca fechada, o aparelho intacto
flashback íntimo
o apontamento entre as páginas de um livro
o porta-malas do camburão
as manchetes nas bancas
“O PIB vai a 10%”,
“Prisioneiros viajam hoje”, alívio
baratas na vagina
corte, tesoura, um talho no sutiã
tesoura roçando os seios
pode pisar neles
barata devidamente arquivada no cu
o capuz, cabeça enfiada na água suja
os gritos sem porrada
ramos de café perfilam o capitel
portas maciças da altura do edifício Itália
as teclas da pianola
em outro andar, mãos algemadas
nu na cadeira do dragão
o corpo do cara ficou odara
Trailer
Um cara descarta o resto do sanduíche
recostada no pé da lixeira
um pedaço de pão cai na cabeça da mendiga,
um outro cara joga um maço de cigarros vazio
a mulher é negra,
umas garotas, lata de pepsi, casca de sorvete
lojas, o logo do banco, câmeras
um cara atravessa na faixa
ela pede esmola:
“Eu não sou artista”
o executivo olha para o outro lado da avenida
um camelô entra na calçada
o dia porra tem que valer a pena
no quiosque, a manchete:
“O desemprego aumenta”
um obeso mórbido passa,
camiseta branca, encharcada de suor,
a raiz do fícus força as bordas do canteiro
sem nenhum puto entre os dedos
a câmera pifa, ela sai de cena