Ninguém está a salvo, muito menos o poeta
Alcir Pécora
Não sei bem dizer o que ouço. Difícil até saber o que ouço ao ouvir Álbum – Deus devolve o revólver, de Régis Bonvicino.
Streaming de poesia com tratamento sonoro talvez fosse o mais descritivo a dizer. O poeta Régis Bonvicino reúne aqui 16 novos poemas –, lidos por ele, pela soprano Caroline de Comi e pelo poeta norte-americano Charles Bernstein –, trabalhados sonoramente por Rodrigo Dário, que também cuidou de todo o design da empreitada, incluindo a bela e anacrônica fita K-7, um dos suportes físicos previstos para “Deus devolve o revólver”, além de um libreto ao feitio de ópera.
A qualidade da poesia, por si mesma, é extraordinária – eis o que precisa ser dito antes de mais nada. Para sentir a potência literária dela bastaria que fosse lançada como livro, o que deverá ocorrer no próximo ano, incluindo um número bem maior de poemas. Mas convém ressaltar também a felicidade desse encontro entre Régis e Bernstein, seu parceiro de outras lides, e seus dois jovens parceiros paulistanos, advindos de outras áreas artísticas: Rodrigo, artista plástico, design gráfico e de som; Caroline, soprano colatura, sem os quais isso que ouço não seria jamais o mesmo que ouço. Embora jovens, está claro que ambos demonstram talento e abertura para a criação radical, associados a um grande apuro técnico. Algo novo se gestou entre eles: um álbum de poesia eletrônica heavy.
Os poemas, vale avisar, são muito duros.
Poemas de mastigar pedras — não as dos agrestes, como a de Cabral, ou as de ferro, como as de Drummond, mas é óbvio que o construtivismo do primeiro, como o desengano lírico do segundo, são um legado decisivo para a poesia de Régis. Poemas de mastigar ruínas dos centros das grandes cidades brasileiras, de que São Paulo é o exemplo por antonomásia, tendo por centro os seus acampamentos ubíquos de lúmpens, cuja figura mais desamparada e fora de controle, mais impossível de assimilar à vida civil, é o noia. Cerca-o uma muralha da classe média empobrecida, igualmente agressiva, e ilhas de riqueza fora-da-lei, cujo delírio é pensar que estão no golfo de Miami, quando não nas praias vermelhas de Marte.
A contundência física da metrópole falida (e não o seu diagnóstico abstrato) é o assunto minuciosamente esquadrinhado por Régis: maus-cheiros, maus-tratos, maus-bofes, os habitantes habitualmente fora de si, movimentos bruscos, presenças inconvenientes que ocupam todos os buracos metrópole sul americana precocemente arruinada. Tudo aqui demonstra ostensivamente o cerne falido do Brasil como projeto civilizatório europeu.
Nesses poemas de horror – não sei de maneira mais exata de caracterizá-los –, nos quais ninguém está a salvo, muito menos o poeta, exposto a tudo que vê e anota, a falência se diz de muitas maneiras: pela indiferença ao sofrimento alheio, e, ainda mais, pelo gosto sensual do sofrimento alheio; pela expansão tóxica da corrupção financeira; pela ação abjeta da indústria farmacêutica, que faz da fragilidade psíquica o coração de seu negócio; pelo amor ao Deus fundamentalista e midiático, aliado de toda violência contra os que não partilham da mesma Glória da ignorância; pelo cuidado minucioso com a lavagem de palavras cruas, que tinham ao menos a vantagem de evidenciar as contradições de seus usos, por outras, higienizadas segundo o processo do doublethink que faz do passado uma mera contingência dos negócios do presente etc. etc. Não há descanso, não há faixas de repouso na poesia barra-pesada de Régis Bonvicino.
Mas isso são apenas sentidos gerais, e a poesia é, antes de tudo, experiência do particular.
Os poemas de Régis Bonvicino, na forma mais direta de descrevê-los tecnicamente, apresentam ondas sucessivas de écfrases paratáticas, descrições e colagens de corte seco de cenas de rua da megalópole, cujo protagonismo forçado, gauche, cabe desde logo aos mendigos. Das écfrases, Régis explora notadamente duas direções: de um lado, a das contradições em relação aos enunciados da política neoliberal, em que a riqueza é entendida como multiplicação da pobreza, e o investimento como operação inalterada por mãos humanas.
De outro lado, o que é mais surpreendente e o que, em geral, reserva para o fecho dos poemas, Régis desenvolve a ideia de que toda a miséria visível está reconstruída em nossas mentes como roteiro de um reality show monstruoso, que os poemas apenas chegam a ser pistas de sua existência. As histórias de vida, nesse caso, não surgem como experiência real de seres destruídos pela história, mas sim como efeito de uma inércia narrativa que remete à própria composição do poema. Isto é, a poesia que se lê é a poesia que lida com a sua fatalidade própria, de iluminar vidas perdidas, destinos miseráveis, situações abjetas a que está obrigada a anotar, sem escapatória. Em suma, como condenação que está obrigada a encenar e que finalmente se abate sobre si mesma: fazer poesia como acender a sua pedra e consumi-la, como poesia da desgraça própria e intransferível.
Em ambas as direções, a da contradição histórica e a da condição terrível em que nasce a poesia de Régis Bonvicino, o tratamento eletrônico de Rodrigo Dário, cuja origem parece estar no industrial rock dos anos 1990, acentuam uma espécie de urgência paradoxal em meio ao vazio e à desolação já instalados. Alertas e sirenes disparam sobre um maquinismo monocórdio, grave/agudo, recitado, atrofiado. Ecos reverberam ameaçadores sobre uma paisagem distópica. A poesia de Régis, nesse estranho álbum, ganha qualquer toque lynchiano, que acentua muito apropriadamente a sua natureza quebrada, sombria e catastrófica.
21 de novembro de 2019
© 2019 De Lírio Records [dist. Tratore]
℗ 2019 De Lírio Records [dist. Tratore]