Despoesia, de Augusto de Campos, é, ao lado de Poesia completa e prosa, de Murilo Mendes, o mais importante lançamento do ano, apesar de estarmos ainda em agosto. A coletânea reúne, em quatro secções nomeadas “expoemas”, “intraduções”, “profilogramas” e “despoemas”, sua produção desde “Viva vaia”(1979). A polissemia do prefixo des colabora para a compreensão dos poemas, percurso e atitude de de Campos. Des pode significar separação, transformação ,intensidade, negação, privação e ação contrária. E, significa, em Augusto, tudo isso, ao mesmo tempo. Augusto é, na poesia contemporânea brasileira, quem mais descende de S. Mallarmé no aspecto da composição dos poemas, que, por outro ângulo,são formulados semanticamente com extrema simplicidade. Veja-se a ordem direta, sem torções sintáticas aparentes, a conversacionalidade e a franqueza de um poema como” bio” (1993) : “dark dark dark/ vazio/ do quasar ao quark/ desvão/ ou desvio/ do olhar que/ me desleu/ que bio/ sou/ eu/ micro ou macro/ clown ou clone/ sombra/ simulacro/ a sonhar/ insone”. O poema é (auto) irônico e, com a tipografia usada, adquire um perfil de viés, um espelho de viés.
A observação que se segue é de Giulio Carlo Argan sobre Mallarmé e vale para, do ponto de vista da composição, Augusto: “Mais tarde, um outro poeta,que gostará de rodear de pintores (Monet,Gauguin etc), aprofundará a procura de uma afinidade estrutural entre pintura e poesia, ao ponto de tentar pela primeira vez uma poesia “visual”…”. A inflação das imagens é uma das características do século 20. Imagens que, ao contrário de revelar, ocultam a realidade, que, apenas supostamente querem oferecer. A poesia de Augusto deve, também, ser vista como uma crítica à esta superoferta desqualificada de imagens, que mais servem à manipulação do que à inteligência.Veja-se um poema como “tvgrama l (tombeau de malarmé): “ah mallarmé/ a carne é triste/ e ninguém te lê/ tudo existe/ pra acabar em tv”. As palavras são intercaladas por letras tês, que se aproximam da figura da cruz. O poema todo na página branca lembra um edifício: os tês parecem janelas apagadas, as outras letras, janelas acesas. Tvs ligadas, apagadas e a visão da cidade como um cemitério, de pessoas e antenas. Augusto é um poeta lírico. O lirismo duro, intenso, da negação e da privação. O não e o nada nele não são retóricos. São essenciais. Lirismo da transformação, da ação contrária. Contra o confessional, embora pessoal. Uma observação da poeta Josely Viana Baptista a respeito da vidaobra de Paulo Leminski parece-me — guardadas as diferenças (de biografia, de rigor, de percepção, de geração ) — pertinente para a poesia de Augusto de Campos. “Sensibilidade inteligente e inteligência sensível”. É bom que se frise este aspecto porque Augusto é, injustamente, visto por certos setores da crítica como um poeta apenas das formas. Não. Augusto é o poeta dos limites da forma em correspondência com a existência. Tudo, em sua poesia, significa,diz, a ponto de uma cruz (no tvgrama) poder ser transformada em uma antena.Ou : “do limite que me limita/o olho iluz/ corpor/ um grito que não grita /amor/ a alma indiz/ ao infinito que infinita”. Indeterminação mais do que ambiguidade é o que se pode ler na poesia de Augusto. A utilização de uma tipografia não usual é indicio de uma ampliação de sentidos. É a recuperação de sentidos, bombardeados pelas imagens da mídia e desgastados pela arte menos consistente. Entre dizer e não dizer, Augusto indiz, diz mais do que de dentro. Por isso é ele hoje o interlocutor de toda a produção atual de poesia no Brasil. De João Cabral e Caetano Veloso, passando pelos que não apreciam seu trabalho. Seu trabalho, para estes, é um modelo a ser negado e abandonado. Argumentam, creio, que a junção estrutural de poesia e pintura, em recortes concisos e precisos, leva a poesia a uma situação difícil em que parece impossível uma saída. Poesia, entretanto, não é fórmula. Não é “egofilia”. E o papel do poeta, se ele aspira à alguma grandeza, é mais de criar tensões e dificuldades do que de encantar ou de agradar. O melhor ensaio crítico sobre a poesia de Augusto de Campos é o poema que abre Agrestes de João Cabral: “é a poesia oferecida/ a quem pode, como a sua, lavar-se da que existia/ levá-la à pureza extrema/ em que é perdida de vista/ ela que hoje da janela/ vê que na rua desfila/ banda de que não faz parte/ rindo de ser sem discípula…”. Discordo de João Cabral no que se refere à pureza. Augusto trabalha com afinidades estruturais entre verso, palavra e quase figura da imagem e sua poesia está impreganada de mundo, de sentido crítico de mundo. Seus poemas tematizam a existência (amorosa, literária — vejam-se as intraduções, física etc) de um homem moderno numa grande cidade industrial do terceiro mundo. Leia-se o lindo poema “ningua”: “morre/ poeta chinfrim/ xinga/ a langue língua do sim/ gueto dos guetos/ preto dos pretos/ xinxim latim/(…)/ go on/ gonga/ a fácil fala/ fluente/ lenga lenga/ cupim cetim…”. Delicadeza, coloquialidade, sutileza para combater criticamente a “fala fácil fluente” brasileira. Mas não pureza, distante e nas alturas. Um dos aspectos mais relevantes da poesia de Augusto é que ela estabelece um dialógo permanente com a ciência, tentando recuperar um comportamento exemplar para a arte. Augusto procede por hipóteses e verificações (com resultados consistentes), de modo análogo à pesquisa cientítica. Trata seus poemas com o mesmo rigor que um cientista. Daí a sua exatidão, precisão, concisão, que, de modo nenhum, se chocam com seu lirismo livre e duro: “a língua está tonta/estátuas estuam/tatos tatuam/sóis suam/luas aluam/meus tuam/a poesia está pronta” (“unreadymade”). É interessante que dois poetas da mesma geração como Augusto de Campos e Joseph Brodisky, com posições quase antagônicas, se voltem para o poeta russo Ossip Mandelstan. Brodisky escreve: “A poesia russa como um todo e Mandelstan em particular não merece ser tratado como um parente pobre. A língua russa e sua literatura, sobretudo a poesia, são as melhores coisas que o país tem”. Augusto intraduz: “o som seco e surdo desta fruta/no murmúrio sem fim do/ oco silêncio da floresta”. A partir deste silêncio,Augusto indiz: “ruídos silêncios palavrões joão/ cage anton weber deus/ putas poetas concretos mães(…)/ sons todos os sons”.
Um dos meus poemas prediletos da coletânea é o que homenageia o escultor/pintor concreto Fejer. As palavras estão diagramadas como quadrados pretos na tela-página branca. Assim: “fejer/ chega/ vacom/ as mão”. O corte das palavras cria caminhos de rato para a fina coloquialidade do texto: “fejer chegava com as mãos pretas de químico/ procurava a fórmula do ouro/ industrial para sobreviver/ em plexiglás ele compunha suas miniaturas colméias… etc”. O poema, entre outras coisas, registra a batalha da sobrevivência de artistas (e poetas) num país como o Brasil. Por outro lado, é simbólico da fidelidade de Augusto de Campos ao projeto de Poesia Concreta.Foi ele quem levou às últimas consequências as questões propostas nos anos 50, quem as desenvolveu numa linha de silêncio e coerência. Isto não desmerece nem a ele nem a outros,como seu irmão Haroldo — o neobarroco que fala muito mas fala o que ninguém está falando(poesia grega,hebráica,japonesa,engajamento etc etc). O concrestimo, sem dúvida, qualifica a obra de Augusto de Campos. Mas, independentemente dele, Augusto de Campos se fez um grande poeta.
Régis Bonvicino