Entrevista para Carlos Adriano
Por que “Céu-eclipse” traz o subtítulo “poema-idéia”? Por que ele se inicia com mastigação de lixo e finda com a rua em silêncio?
Régis Bonvicino: “Poema-idéia”: para alertar que “Céu-eclipse” é, na verdade, um poema só, feito de conseqüências. Para acentuar a noção de conjunto, de exploração de tema e subtemas. Para marcar intenção de fôlego, mas sobretudo porque quis trabalhar questões de narrativa. E evitar o poema de circunstância, o poema-comentário, tão presente. “Céu-eclipse” se inicia tentando criar relação com o tempo: “at late evening”. Tarde da noite, deste tempo. Prossegue com as luzes, vermelha e amarela, as luzes mastigando o lixo que está num caminhão de lixo. Estava com Creeley na Rua Baronesa de Itu, num carro. Em 1997. E ele se deixou tomar pelo som do triturador e repetia “crunch, crunch”. O poema foi escrito para iniciar uma renga ( arenga, lamentação? ) com vários poetas. De novo, a questão da conseqüência, das várias vozes. Este ato de a “luz” mastigar o lixo governa, penso, os fragmentos do conjunto, que lidam com as contradições entre luz e sombra, em diversas situações. Luz e sombra neste tempo – talvez este seja o mote do livro. Em “Céu-eclipse”, você ( leitor ) pode escutar “o seu eclipse”. Finda sim, neste sentido, com a rua em silêncio para remarcar o desencontro entre a capacidade de percepção de certa tentativa de poesia e o “ânimo mecânico” das pessoas que transitam pelas ruas. É um final meio óbvio. E algo pessimista, como todo o conjunto. Eu deveria ter finalizado com o poema “Diógenes” ( “morto / meu corpo / aos dentes / de lobo / como sempre” ) mas não o fiz.
Como você relaciona a questão da imanência, em seus poemas, com declarações como “poesia é um contínuo abandonar de referências”?
RB: A literalidade me inspira. Escrevo a partir de coisas, de situações, para tentar construir vida e linguagem. Não estou apaixonado por minha “auto-imagem”. Não amo meu próprio reflexo. E por isso posso abandonar as águas paradas da fonte. Imanência traz a idéia de participação, de outros. E igualmente a de existência em um determinado objeto. Wittgenstein: “um objeto contém a possibilidade de todas as situações”. A possibilidade da percepção de um “estado de coisas” me movimentou em “Céu-eclipse”. Hermes, o “ad utrumque peritus”, versado em conduzir para a luz ou para as trevas. Tentei explorar esta contradição entre progresso científico e desmantelamento da mente e da condição humana. Creio que Robert Kurz sintetiza minhas preocupações com a seguinte frase: ” Se a arte ( a poesia ) não é mais capaz de refletir positivamente o todo cindido, que o faça negativamente, ao elevar à consciência a precariedade estética do mundo economicista”. Se eu pudesse definir minhas intenções, definiria como aspiração de uma poesia ” que se supera a si mesma como crítica da própria desestetização social “, podendo, a partir daí, renascer para a própria vida. Leia-se o poema “O agapanto”: “… a pétala deslocou a parábola. A flor secou a fábula”. Sim: a poesia é um contínuo abandonar de referências estéticas e literárias. É o que quis dizer. Não se pode mais pensar a poesia em termos “literários”, embora isto seja “inevitável”. Não se pode mais pensar o presente,com os termos até de um passado recente. Por exemplo,em sentido mais geral,opto pelo Drummond de a “pedra no meio do caminho”,pelo Drummond de “não se mate Carlos” e execro o sonetista, que, hoje,para mim, simboliza o caso mais agudo de conformismo de direita. Daquele ( não Drummond … ) que vê o “passado” no presente,daquele que vê o passado como “eterno”. O eterno como imóvel. Tento ver o presente no presente,conteúdo e formas coesos,negando o passado deste presente. Ou tento ver o futuro no presente pois o presente,em termos de sociedade, é bárbaro. É inaceitável. Auschwitz é hoje onipresente, na TV, nas ruas, nos governos, nas pessoas …
“Céu-eclipse” dialoga claramente com visualidades, da arquitetura ao cinema. O que há de temperamento e o que há de projeto nisto?
RB: Sim, tenta dialogar. Há uma seqüência inteira sobre a questão da “casa”. Da idéia de “casas sem dono” — de Lucio Costa — à casa utópica, “Chemosphere”, de John Lautner. Há também seqüências sobre casas improvisadas na rua, aqui ou em Los Angeles. Sobre igualmente a casa que transforma a rua em um verdadeiro “campo de concentração”. Tentei explorar especificamente esta questão no poema “Composição”, que “narra” os dispositivos antimendigos da cidade de São Paulo. O “cano”, com furos eqüidistantes ( que pode ser uma arma… ), lançando jatos de água contra os indesejados. Um lance de paralelepípedos desajustados, para não permitir que as pessoas fiquem sentadas nele. Parapeitos mínimos, para não permitir que se durma nas janelas. Grades de ferro pontiagudas. Vasos com espinhos. Etc. Este poema “Composição” se entende no seguinte “Esboço”: ” Facas em punho / numa reunião de muros / riscados / Tarde de verão / na cela, / sentados – uma lâmpada no teto / é um sol apagado”. A cela como a casa, de alguns. “Estes dois fragmentos, são precedidos por “À tarde”, onde “registro” mendigos se aliviando à sombra de “anúncios”, e por “Seqüência”, que é homenagem a Acácio e ao filme “O Bandido da Luz Vermelha”, de Rogério Sganzerla. A questão do “todo cindido”. Acácio passou trinta anos na prisão e, logo após sair, foi assassinado : “de novo novamente morto”. Este paradoxo me provocou! A questão do território, da fixação de novos territórios, é uma das principais questões de “Céu-eclipse”. Veja, o poema “Casas sem dono” partiu das seguintes anotações de Lucio Costa, em confronto com minha perplexidade e observação da vida de mendigos da Santa Cecília: ” A clientela continuava a querer casas de “estilo” – francês, inglês,”colonial” – coisas que eu já não conseguia mais fazer. Na falta de trabalho, inventava casas para terrenos convencionais de doze metros por trinta e seis – ” Casas sem dono” “.
Um dia, de um verão, estava numa praia edênica e vi um mamoeiro e me lembrei da tela “O Mamoeiro”, de Tarsila do Amaral, de 1925. Escrevi o poema “Pontas”, em diálogos – no plural. Na verdade, “Céu-eclipse” procura repensar a eficácia da tradição experimental moderna do Brasil e procura encontrar “estradas” nela. Ao longo da composição do livro me recordava sempre de Rimbaud, em Aden, enviando “relatos” para a Sociedade de Geografia ( da França ). Espero que Milton Santos leia “Céu-eclipse”!!! Temperamento e projeto: penso em Acácio ou “um disparo na têmpora”. “O Bandido da luz Vermelha” é meu filme brasileiro favorito. Aquela personagem, o JB, o político, o “Mão Negra”, contra o “bandido” da luz vermelha… “Luz vermelha” que ecoa a luz vermelha que mastiga o lixo, do início do livro. A boca do lixo, agora com novo sentido.
Do tema à forma, qual é o seu método de trabalho? Como você escreveu o poema “Luz”?
RB: O poema cria o método e o poeta. O livro vai criando seus métodos. Você me indaga sobre o poema “Luz”: ele retrata situação literal. Escrevia num pequeno cômodo. O abajur estava aceso. Havia dicionários e um mapa da lua sobre a mesa. O poema não “vinha”: “tinta seca de silêncios gêmeos” – gemidos. Fazia muito frio. Era junho ou julho, à noite. Me sentia como se tivesse um prego de arame na cabeça. Tentava escrever, cansado, meus dedos se moviam sobre as teclas, mas “sombras” antecipavam cada palavra. Não conseguia dizer o que queria dizer. Me lembrei do poema “Me transformo”, de “Ossos de Borboleta” ( 1996 ). E “borboletas” se acenderam em mim, precipitando entretanto “palavras”. Sim há o gosto sexual da palavra em mim tanto quanto o do sentido. O gosto de criar tramas de palavras, com sentido preciso. “Luz” se faz seguir por “Ilustração de Violeta”, onde retomo a situação de noite de inverno, pensando na casa, e no dia-a-dia, como “campo de concentração”: muda seqüência de quinas! Mas escrevo de um modo geral sempre. Mas gostaria de, sobre poesia, dizer com serenidade: “Já nem penso mais nisso”.
Quais os riscos e desafios para se fazer hoje uma poesia de novas dicções? O que é uma nova dicção?
RB: Foi bom você perguntar isso. Acho que a poesia não prescinde da poesia. Não acho que o poema, como o multiculturalismo afirma, é apenas um sintoma de questões sociais ou econômicas ou culturais. ( O multiculturalismo tem nojo da poesia, expressando um nojo da parte mais retrógrada da sociedade, em jargão apenas mais sofisticado ). A poesia é arte da linguagem, como bem diz Marjorie Perloff. Arte da linguagem para avaliar a ordem social, para reavivar nossa capacidade de sentir e pensar. As linguagens do dia-a-dia estão adulteradas. As linguagens literárias do passado estão também adulteradas. Existe também a questão da norma. Tudo tende à norma. É preciso pensar para além dessa espécie de “conservadorismo”. Cada tempo deve encontrar sua fala, sua dicção. Contudo, o presente é mais adiante. São muitos os riscos ( perda de amigos, perda de leitores, perda de consagrações ) de se tentar ( pois fadada ao fracasso ) uma nova poesia. Mas só ela me move. Só ela move a poesia, que é múltipla em suas possibilidades de inovação. O que faz a diferença? Qual a diferença que esta nova poesia pode fazer?
Talvez “Nothing the sun could not explain / 20 contemporary Brazilian poets” ( Sun & Moon Press, 1997 ) seja a antologia mais importante da poesia brasileira da década de 90. Suas relações com os poetas norte-americanos, como Robert Creeley, Douglas Messerli, Michael Palmer e Charles Bernstein, são conhecidas e claras. Fale, por favor, da antologia e destes interlocutores?
RB: Esta discrepância entre o poder dos EUA e seus artistas me fascina. Esta contradição entre poetas geniais e um status quo repugnante, que rompe tratados internacionais e liquida países em nome dos “direitos humanos”… Conheci Creeley ( que foi e é fundamental para mim ) em 1993,1994 e em 1994 Douglas Messerli. Amigos. Em seguida, Michael. A partir deste diálogo, surgiu “Nothing the sun could not explain”. O ensaísta e prosador João Almino, que à época era o Cônsul do Brasil em São Francisco, queria fazer uma antologia de poesia na City Light Books ( de inspiração pop-beat ) e eu na Sun & Moon, de Los Angeles… Ainda bem que Lawrence Ferlinghetti disse não ao João Almino e que então nós dois pudemos deixar o projeto fluir com Douglas, que é conectado com o pessoal da Language Poetry. “Nothing the sun” foi feita de 1994 a 1995. Representa uma tentativa de recorte de uma possibilidade de poesia experimental em conversa com o modernismo, inclusive internacional. Não é uma antologia panorâmica mas sim de escolhas. Quis ( tanto quanto Douglas Messerli e Michael Palmer ) construir, com o livro, exemplos de poesia de inovação, em diálogo vivo com uma nova geografia mundial. Se ela é representativa, o é por suas escolhas, por tentar não fazer média. O interessante é verificar se os poetas nela incluídos permanecem ou não coerentes com este tal de projeto de afirmação de um experimentalismo de diferenças ( atenção: soneto não é diferença ). Talvez, alguns deles estejam lá só para se promoverem, por serem caroneiros “fisiológicos”. Só tive a felicidade de conhecer pessoalmente Charles em 1997, em Nova York, onde fizemos uma leitura bem divertida.
Régis Bonvicino, 7 de junho de 1999.