Leio Música do Parnaso, de Manuel Botelho de Oliveira, em edição fac-similar acompanhada de estudo crítico de Ivan Teixeira. Uma das razões da reedição da obra, no dizer de Teixeira, é o trecentésimo aniversário de seu lançamento ocorrido em 2005. Antes de entrar na avaliação do livro, cabe situá-lo e a seu autor no tempo, mesmo que de modo brevíssimo. Música do Parnaso é uma das últimas manifestações do que se convencionou depois de designar por barroco. Seu marco inicial, na colônia, é a publicação, em 1601, da Prosopopéia, poema épico de Bento Teixeira, que cuida da conquista de Pernambuco. As características de estilo do barroco europeu marcam as crônicas de Ambrósio Fernandes Brandão e Simão de Vasconcelos, os sermões do frei Vicente do Salvador e do padre Antônio Vieira, os poemas nativistas do frei Manuel de Santa Maria Itaparica, celebrando a natureza da província transmarina e os poemas do baiano Gregório de Matos, autor da obra mais importante deste período, ao lado dos textos de Vieira. Nesta quadra, sem imprensa pública, a apresentação das obras era feita, em leituras, nas academias, que se multiplicaram e criaram, naquele momento, um certo gosto pela literatura, incluindo-se também preocupações com a incipiente consciência da brasilidade. As mais importantes foram a dos Esquecidos (Salvador, 1724/1725) e, no Rio de Janeiro, a dos Felizes (1736-1740) e a dos Seletos (1752-1754).
O organzizador explica que o plurilinguismo de Música do Parnaso decorre da convicção de que, para seu autor, o castelhano era a língua mais adequada ao exercício do verso como foram, em outros momentos, o grego, o latim e o italiano. Botelho de Oliveira, um tanto mais tarde, passou a escrever apenas em português porque “a língua, no cenário internacional, já havia adquirido relevo com a obra de Camões”. Prossegue Teixeira: “… Tal visão sistêmica da arte poética, fundada em procedimentos cristalizados, fórmulas reiteradas e tópicas consagradas prende-se à tradição aristotélica, segundo à qual a poética era entendida como parte subordinada á retórica. Praticava-se a poesia como modalidade verbal de imitação…”. Importava, para a qualificação de um autor, o domínio técnico que possuía dos modelos vigentes: Homero, Virgílio, Ovídio, Tasso, Marino, Petrarca, Gôngora e Camões, grosso modo. A revalorização de Música do Parnaso, empreendida por seu organizador, justifica-se deste modo: “O livro de Botelho de Oliveira encena reiteradamente o ato de compor agudezas, no sentido de reduplicar a imitação de modelos previamente estabelecidos como ótimos”.
Afirmo que o maior mérito crítico de Teixeira é o de justamente tentar revalorizar uma obra produzida no período barroco, condenado veementemente pela escola de Antonio Candido, que se expressa sobre esta época do seguinte modo, conforme transcrição do prefaciador: “… Já aqui não estamos na região elevada em que o estilo culto exprime uma visão da alma e do mundo (…). Estamos antes no âmbito do Barroco vazio e malabarístico, contra o qual se erguerão os árcades, e que passou à posteridade como índice pejorativo…”. O organizador procura frisar as qualidades, por exemplo, o trecho “À Rosa”, em que suas oitavas se destacam “pelo singular efeito de artifício engenhoso” e não como mero índice de malabarismo, acrescento. Passo a transcrever trecho do poema: “ Se abre a Rosa pomposo nascimento, / Se bebe a Rosa nacarada morte, / Se foi sol no purpúreo luzimento, / Também se iguala ao sol na breve morte…”. Segundo Teixeira, que coteja o tratamento de Botelho de Oliveira ao tema da rosa com o de Jerônimo Bahia, o primeiro adicionaria, para além das comprações comuns com o sol e com a aurora, o traço do efêmero, num jogo forte de cor e sentido, que pode ser apreciado hoje.
Impossível discutir questões de teoria literária no espaço de uma resenha. Aqui, importa chamar a atenção para os méritos do livro: reeditar e repor em circulação um autor excluído de cânones mais oficiais, em edição fac-similar. Talvez, Teixeira , para além do debate em torno da invalidação/validação da obra de Botelho de Oliveira, debate um pouco datado, pudesse ter aprofundado a questão da hesitação de línguas no autor de Música do Parnaso, que, de certo modo, torna-o mais contemporâneo do que a própria discussão em torno do índice a ser aplicado em seu “artifício engenhoso”. A hesitação em si, este conflito, revela o caráter de língua minoritária do português, o caráter de túmulo, de sepultura apreendido, por exemplo, por Olavo Bilac diante de outras línguas como o inglês e o espanhol. Botelho de Oliveira escreveu a maior parte de sua Música do Parnaso num idioma majoritário, o castelhano, criando uma fricção com o português. Este aspecto dos modelos (lingüísticos e políticos) foi pouco explorado pelo organizador, que também poderia ter anotado a transcrição do poema, que consta do fac-símile e que se coloca meio enigmático para o leitor.
Resenha do livro Música do Parnaso, de Manuel Botelho de Oliveira, publicado pela Ateliê Editorial (2005), para O Estado de S. Paulo, em março de 2006.