Poemas do argentino Oliverio Girondo (1891 / 1967) e do norte-americano Robert Creeley (1926) serão trabalhados, criticamente, a partir de certas observações e construções teóricas de Mikhail Bakhtin, de “A cultura popular na idade média e no renascimento” 1. Este pequeno ensaio vai procurar mostrar que, em autores de línguas e gerações diversas, os “destroços do realismo grotesco”, de que fala Bakhtin, estão presentes e são, como afirma o autor, “capazes de recuperar sua (da literatura) vitalidade”.
Depois de anotar que o riso popular e suas formas constituem o campo menos estudado da criação popular, Bakhtin observa que: “O mundo infinito das formas e manifestações do riso opunha-se à cultura oficial, ao tom sério, religioso e feudal da época”Adiante, em seu “A cultura popular”, Bakhtin anota que, naquilo que ele batiza de realismo grotesco, o princípio material e corporal aparece sob a forma universal, festiva e utópica: “O princípio material e corporal é percebido como universal e popular e como tal opõe-se a toda superação das raízes materiais e corporais do mundo, a todo isolamento e confinamento em si mesmo, a todo caráter ideal abstrato, a toda pretensão de significação destacada e independente da terra e do corpo”. Mostrar a presença fundante de terra e corpo em poemas de Girondo e Creeley é um dos objetivos deste trabalho. “O que você no corpo tinha esquecido”. É a afirmação-indagação que inaugura o poema “Song” 2, de Creeley. “As vertentes as órbitas perderam a / terra os espelhos os braços os mortos as / amarras”, anota Girondo em “Transudar”, fragmento de “En la masmédula” 3.
Observa Bakhtin que o traço marcante do realismo grotesco é o rebaixamento, isto é, a transferência ao plano material e corporal, o da terra e do corpo na sua indissolúvel unidade, de tudo que é elevado, espiritual, ideal e abstrato. Para Bakhtin, no realismo grotesco, a degradação do sublime não tem um caráter formal ou relativo. Alto e baixo possuem exclusivamente um sentido topográfico. Alto é o céu. Baixo é a terra e a terra é o princípio de absorção (o túmulo, o ventre) e, ao mesmo tempo, de nascimento e de ressureição (o seio materno). Escreve ele: “esse é o valor topográfico do alto e do baixo no seu aspecto cósmico”. Cósmico e corporal umbilicalmente vinculados: “o alto é representado pelo rosto (a cabeça) e o baixo pelos órgãos genitais, o ventre e o traseiro”. Aponta Bakhtin, por outro lado, que o baixo é a terra que dá vida e o seio corporal; o baixo é sempre o começo. Ressalvando a presença atenuada do realismo grotesco em D. Quixote, Bakhtin anota: “O papel de Sancho Pança em relação a D. Quixote pode ser comparado ao das paródias medievais diante das idéias e cultos sublimes; ao papel do bufão frente ao cerimonial sério (…). O alegre princípio regenarador existe ainda nas imagens terra-a-terra dos moinhos de vento (gigantes), albergues (castelos), rebanhos de cordeiros e ovelhas (exército de cavaleiros), estalajadeiros (castelães) e prostitutas (damas da nobreza)”. Conclui Bakhtin: “Esse é o sentido primordial e canarvalesco da vida que aparece nas imagens materiais e corporais do romance de Cervantes. É precisamente esse sentido que eleva o estilo de seu realismo, seu universalismo e seu profundo utopismo popular”. A perda progressiva do caráter universal do corpo e dos objetos, que adquirem perfil privado e pessoal, com a consequência do apequenamento e da domesticação, é, para Bakhtin, o marco inicial da modernidade (no caso, Cervantes) onde corpo e objetos “são degradados ao nível de acessórios imóveis da vida cotidiana individual, objetos de desejo e posse egoistas. Já não é o inferior positivo, capaz de engendrar a vida e renovar, mas um obstáculo estúpido e moribundo que se levanta contra aspirações do ideal”. Observa amargamente Bakhtin que, na vida diária das pessoas, isoladas, as imagens do inferior corporal conservam apenas seu valor negativo, rompendo-se o vínculo com a terra e com o cosmos.
Para o teórico, a imagem grotesca caracteriza um fenômeno em estado de transformação, de metamorfose ainda imcompleta, no estágio da morte e do nascimento, do crescimento e da evolução. É ela ambivalente, inconclusiva. Para a análise, a seguir dos poemas, importa a conceituação um pouco mais extensa da imagem grotesca que irrompe em algumas manifestações artísticas contemporânea, apesar e contra a visão domesticada e utilitária do corpo e dos objetos. Para Bakhtin, as imagens grotescas são: “ambivalentes e contraditórias, parecendo disformes, monstruosas e horrendas, se consideradas do ponto de vista da estética clássica, da estética da vida cotidiana preestabelecida e completa”. O ensaista dá alguns exemplos de imagens grotescas: o coito, a gravidez, o parto, o crescimento corporal, a velhice, a desagregação e o despedaçamento corporal, afirmando que, neles, existe materialidade imediata. O poema “Song” — em minha tradução — de Creeley se inicia com um verso que, ao mesmo tempo, parece afirmação e interrogação: “O que no corpo você tinha esquecido”. O verso aponta para uma outra visão de corpo — contrária à privada e pessoal, domesticada e apequenada. O verso seguinte marca que, alguma coisa, foi deixada de lado neste corpo, alguma coisa que o sujeito não quer. Há portanto um conflito entre visões do corpo: um corpo esquecido, deixado de lado, que o sujeito não quer. O conflito é acirrado na estrofe seguinte com a dúvida: “ou o que no corpo, você quer / e morreria por— / e pensa que isso basta”. A estrofe tem a função de revelar que o sujeito imagina para si um corpo único, fechado, completo, que, porém, é incompleto. A terceira e quarta estrofes vão negar tais “verdades”, imaginadas pelo sujeito. A terceira estrofe — com tom “clássico”— se estabelece como uma hipótese: “se a vida é uma forma a ser esquecida / já que você partiu e sem remorso / ninguém existe, no que você foi — /”. Este trecho aparentemente se afasta dos conceitos de Bakhtin: “Nos períodos iniciais ou arcaicos do grotesco, o tempo aparece como uma simples justaposição simultânea do começo e do fim: inverno-primavera, morte-nascimento”. O poema parece caminhar para a reiteração do corpo pessoal, privado, domesticado, quando já na primeira linha da última estrofe diz: “Este lugar vazio é tudo que há”. No verso seguinte, a vida do sujeito reaparece como lembrança, memória — formas atuais de se pensar a “morte”, diferentemente do grotesco popular e medieval — que a pensava como início regenerador. Todavia, a supresa veemente do último verso, que resgata, em sua materialidade imediata, toda uma situação de transformação, de metamorfose, de incompletude para aquele corpo (este-lugar-vazio-é-tudo-que-há): “e se o rosto é lembrado / ou cão late, o leite do gato”. A lembrança se materializa no latido do cão e no gato, por assim dizer, esfomeado, princípio regenerador — instinto, imagem grotesca, que arremata o poema e estabelece uma visão de incompletude para o corpo, tentando negar “a visão tipicamente burguesa, que expressa um modo preestablecido e fragmentário”. A unidade cósmica do corpo é recuperada no “ou cão late, gato esfomeado”, reintegradora, dele, na terra. Inexistente, portanto, um olhar puramente negativo do corpo ou da morte, apontando para — isto sim — o inacabamento da vida, em seu jogo com formas animais diversas. . A afirmação / interrogação se transforma em resposta . O que no corpo você tinha esquecido ? Resposta, depois da morte: ou cão late, o leite do gato. O significado do poema reside nesta síntese de inacabamento orgânico do corpo — rejeitando uma visão clássica da vida.
Destroços do grotesco. A leitura é autorizada pelo próprio Mikkhail Bakhtin: “No século XX, assistimos a um novo e poderoso renascimento do grotesco. (…). A linha de sua evolução é bastante complicada e contraditória”. Bakhtin aponta duas vertentes de retomada do grotesco. A primeira, modernista (Alfred Jarry), a segunda, realista (Thomas Mann, Bertold Brecht, Pablo Neruda etc). Ao se referir a Neruda, fala de uma “influência direta das formas carnavalescas”. Neruda é, ao lado entre outros de Girondo, um dos fundadores da nova poesia latino-americana, na acepção do crítico Saul Yurkievitch.
Tratando do grotesco na Idade Média, Bakhtin observa: “O ambiente de liberdade efêmera reinava tanto na praça pública como no banquete festivo doméstico. (…). Essa tradição permanece viva nos séculos seguintes. Ela apresenta analogias com as tradições das canções báquicas de mesa, que associam o universalismo (a vida e a morte), o aspecto material e corporal (o vinho, o alimento, o amor carnal), um sentimento elementar do tempo (juventude, velhice, caráter efêmero da vida, versatilidade do destino) a um utopismo original (fraternidade dos bebedores, triunfo da abundância etc). Universalismo e liberdade que, segundo o teórico, ligavam-se à verdade popular não-oficial. Pode-se, de algum modo, entender a poesia contemporânea como uma verdade (muitas vezes erudita) não-oficial, em virtude de sua condição de marginalidade no mundo atual. Prosssegue Bakhtin: “Na cultura clássica, o sério é oficial, autoritário, associa-se à violência, às interdições, às restrições. Há nessa seriedade um elemento de medo e de intimidação…”. Por outro lado, pode-se — em contraposição — afirmar que, com o riso e com a poesia, o medo foi dominado. Esses elementos, inventariados pelo ensaista, encontram-se à farta na poesia de Oliverio Girondo e sobretudo em En la masmédula. Yurkievitch anota que “Reglar al desarreglo sin arregarlo” é uma das preocupações fundamentais de Girondo. Em outras palavras, mais claras, representar a destruição através de construções verbais eficazes (vida / morte). De acordo com Yurkievitch, Girondo passa a negar e a renegar tudo aquilo que só tem estatuto literário, filiando-se àquilo que se pode chmar de vital-intuitivo-construtivo, numa operação de reintegração fraterna com o cosmos. Daí, a importância do larval — restabelecimento do vínculo íntimo com a mãe terra, com as forças genéticas. A restituição do cordão umblical: a volta à integridade do começo de modo tão veemente que o lança, para além do materno-infantil, num discurso — à maneira de Bakhtin — protoplasmático.
A terra é o princípio da absorção. Túmulo. Ventre. Seio materno. A ambivalência contraditória. Morte. Ressureição. A velha grávida, sorrindo, no exemplo de Bakhtin. O vinho. O alimento. O amor carnal. Temas presentes e trabalhados por Girondo em todo En la masmédula e, por exemplo, no fragmento “Ela”, que será mais detidamente analisado. Antes, contudo, uma repassada nas imagens terra-a-terra. presentes em todo o poema. Terra como, ao mesmo tempo, túmulo, ventre e seios: “os ébrios leitos de limo telúricos entre fanais / seios” (Fragmento “A mescla”). Por exemplo, a ambivalência morte / vida: “ocos intransitivos entre borbulhas mães” (“Ilhas só de sangue”). Ainda terra como túmulo, ventre e seio: “e seu giro fundo lodo não menos menos que outros / afins cogirantes / até o desmame hético / até o desmame neutro / até morrê-la” (Fragmento “Até morrê-la”). O poema “Ela” tematiza uma mulher mas isso somente vai se clareando ao longo de sua leitura. Os primeiros versos transitam entre o significativo e o impreciso, dando até a impressão de que tratam de um ser enfermo: “É uma intensíssima corrente / um relâmpago ser de leito / uma dona mórbida onda / um refluxo zumbo de anestesia…”. A descrição de uma mulher enferma (quase morta), numa cama de hospital? A resposta é oferecida pelos versos seguintes: “uma voraz contráctil prênsil corola entreaberta”. Aí, neste ponto, reside a ambivalência inventariada por Bakhtin no mundo popular medieval, na contradição morte / vida, na morte vista como início. Dessa “corola entreaberta” exala o perfume de seu “orvalho afradisíaco”. Em seguida, o poeta nomeia a situação como “carnalessência” e a qualifica de “natal/ letal”. O paradoxo porposto pelo poeta encontra eco nas idéias de Bakhtin a respeito do mundo medieval, de seu inacabamento. A proposição da terra como túmulo, ventre e seio vai, contudo, encontrar formulação ainda mais intensa nos versos seguintes, onde a cada palavra existe uma contradição sem síntese, que não a idéia de morte como reinício, de terra como túmulo e literalmente ventre: “é a sede dela ela e suas vertentes lentas entre- / mortes que estrelam e desegregam / ainda que Deus seja seu ventre / mas também é a crisálida de uma inalada larva / do nada”. Os aspectos materiais e corporais deste poema se vão, a cada momento, se explicitando. Da “corola entreaberta”, que equivale ao “traseiro” bakhtiniano até a nomeação da mulher como “composto terrestre de libido éden inferno”. Deus e o diabo — “resíduos de uma solução insolúvel” ou “pedaço ultraporoso da realidade indubitável”. Aí, novamente, voltamos a Bakhtin: o alimento e o amor carnal ou “um paraíso feito carne/ uma perdiz ao creme”. Despótica matéria, mera aparência de ausência, que restabelece a imagem positiva do corpo e de suas partes inferiores.
Notas
1. Mikhail Bakhtin, A Cultura Popular no Renascimento e na Idade Média, Edunb/ Hucitec, segunda edição, 1993
2. Song, poema de Robert Creeley, estampado no livro Windows, New Directions, 1988
3. Os poemas de Oliverio Girondo mencionados neste trabalho pertecem ao livro En la masmédula, Obras Completas de Oliverio Girondo, Editorial Losada, S. A., Buenos Aires, 1968
Régis Bonvicino