Esta nova coletânea (2004-2006) de Régis Bonvicino, desde a leitura dos primeiros poemas, regala-nos com uma grata sensação de organicidade. De fato, tudo vai se integrando aos poucos numa grande tela, ao mesmo tempo tecida e pintada, numa grande “página órfã” de um livro que, hélas, é “imitação de vida”, um lugar/circunstância em que “Jesus é um recurso abstrato”, Deus é útil no momento do espasmo e o pobre lobo-guará (de “Extinção”, uma obra-prima) “dócil, sem astúcia,/ é facilmente capturado e morto/ por traficantes de pele/ quando então uiva”.
“Escrever poesia hoje, sobre quê?”, perguntava o autor num dos intervalos do congresso Poesia em tempo de guerra e banalidade, que ele organizou em 2006 com Alcir Pécora, seu interlocutor privilegiado (a quem dedica o livro, aludindo à colaboração Zanzotto/Fellini?). A resposta é dada aqui: neste tempo de guerra e banalidade cabe à poesia também, e talvez mais essencialmente, empenhar-se (enfronhar-se, escavar) nas dobras aberrantes, mas tão dolorosamente reais, de nossa atualidade. Nada de idílico, portanto, tirante o poema inicial, à moda de master Creeley, que canta a mulher amada dos baixios de sua ingrata condição de poeta, afeito à “praga das palavras”.
As palavras que recorrem são as primeiras espias da organicidade com que é visto esse mundo desregrado, apodrecido, disparatado que ruma tão irremediavelmente para o inorgânico: lixo, mendigo, aranha, pomba, carcaça, descarga, tráfico, urina, muro, rato, sofá, canteiro, calçada, caveira, viaduto, cachorro, túnel.
No universo das palavras-carcaça, das quais fala João Adolfo Hansen no alentado posfácio, elas se encontram, nos momentos mais sintomáticos, amarradas a seu avesso, funcional ou lexical, numa “contrafuga” aparente ou real: gaivota sem peixe (“Agonia”), jacarandá sem folhas (“Cambio, exchange”), formigas às avessas (“Enésima potência”), garrafa lançada contra o espelho (“Manuscrito”), Leminski/Kaetan (“Letra”), mendigo/rosto da modelo (“Anúncio”); flor nula da Coca-cola/fórmula (“Morte”); fedendo a mim mesmo/fedendo a expectativas (“Caminho de hamster”), floripondio/mendiga na igreja; pirâmides/camisetas (“Grafites”), maconha/colgate; dentes/pingentes(“Roupoema”), nunca e sempre (“Legendas do muro”), tráfego/tráfico (“Ok, ok”), sombra/cortina (“De manhã”), moradores/retirantes (“Moradores”), mendigo/vira-lata (“Rotina”), coruja/morcego (“Petróglifo 3”), dormir com medo de não dormir (“O sono”)…
Ao mesmo tempo, numa outra camada, há uma recorrência sonora entre certas palavras que transforma distâncias em associações imediatas, aproximando, como costuma a poesia, vertiginosamente, o som e o sentido.
Vejam-se alguns exemplos curiosos. No poema “It’s not looking great!”, no qual o autor investe contra o modelo que, em nossa cultura, se tornaram as manequins, e que já começa com o alusivo kokein/keit, encontramos, num crescente, as associações: atéia/ateou fogo em sua carreira; boquete/nos bosques; mosca/cosmopolita etc.
No antológico “Definitions of Brazil”, escrito com seu parceiro Charles Bernstein, surpreendemo-nos com suas assonâncias “snakes who ate cakes”; “intoxicated syncopations”; “the model of a model”; “flying down to Rio with Dolores del Rio”, ou “Under the veneer of its vivacity, Brazil is violent, a vile viper playing a violet viola”. Aliás, esse “snakes who ate cakes” comparece também no poema “Sem título”, dedicado ao colega russo Arkadii Dragomoshchenko – tradução livre de zmiei ediat znanie como “cobras devoram tortas”.
Mas, o caminho que parte de um sentido para outro sentido contíguo com o qual se amálgama, privilegiando a percepção mental, agora já não mais visando o sensorial, também é marcante em poemas como “Concerto” (no qual todos os sentidos são convocados para uma conceituação final), “Duas linhas” (no qual, numa acabrunhante sarabanda que quebra os tímpanos de “mulas” disfarçadas de manequins, no fim, um soldado entra no quarto). Num outro quarto, no poema seguinte (“Música”), há prisioneiros de guerra árabes de soldados norte-americanos, submetidos a outra sarabanda: “Te estrangulei até a morte,/ depois quebrei tuas pernas”) etc.
Falou-se em “telas”, pois, de fato, as artes plásticas também têm parte ativa na composição dos poemas de Régis. Em “De manhã” é criada uma ambiência espacial (na pista do viaduto aqui embaixo) habitada pelos mendigos. A ambiência é mobiliada com sofás brancos, creme (não de pátina, mas de tempo), fogão, escapamentos, objetos e sobras, sacos, vigas, armários sem fórmica, tudo organizado e varrido. Não é um fato solto. Em “Moradores”, o poema seguinte, a ambiência evolui para a ponta do túnel “onde há um canto,/ pintado na parede/ um detalhe de Retirantes de Candido/ Portinari, óleo sobre concreto/ sem lâmpada no teto”. Isso, sem contar os ready-mades e as colagens apontadas pelo posfaciador.
Essa continuidade, manifesta em tantos níveis, confere ao todo (52 poemas) uma coesão não tão conspícua em obras anteriores do poeta. Mesmo os dois trechos em prosa nada têm de fragmentário e tanto menos de aleatório: as linhas são organizadas em verbetes (“Vidro fumê”), quando não numa grande definição (por exclusão) do que um poema não é (“Prosa”). Como conclui Sérgio Medeiros (<www.centopeia.net>): “O leitor vai achar que tanta agonia gera necessariamente um êxtase invertido, um êxtase às avessas. Achará que a precisão é o único consolo que nos resta – ver tudo nitidamente. Pelo menos isso. Mas descobrirá então uma enorme ironia e uma crítica feroz em tudo isso. Se sentirá desconfortável, no mínimo”.