Régis Bonvicino compõe os poemas de Página órfã por justaposição integradora de pedaços de discursos disparatados – não usa fragmentos, pois não pressupõe sujeito substancial nem todo – efetuando uma referência, o presente da vida capitalista. Sua matéria é o Junkspace da fórmula de Rem Koolhaas: o espaço-lixo que as metástases dos processos industriais e financeiros da assim chamada civilização norte-americana espalham mundialmente como um todo sem todo de competição empresarial, eletrônica minimalista high tech, despedaçamentos de corpos em escala industrial, narcisismo e apatia da alma regressiva. Em 2007, quando as oposições do pensamento, as oposições políticas e as oposições estéticas modernas estão arquivadas pelo capital, a referência efetuada é a da mesma barbárie kitsch, Disney-pop-policial, do tempo em que a negação das oposições tinha valor, sentido e eficácia. O lixão da cultura contemporânea não tem memória, e suas artes descartam a hierarquia moderna do valor estético na equivalência do “liberou geral” geral. Ilustradas e finas como um político brasileiro, profundas e filósofas como um empresário, retinas céticas fatigadas de tanta experiência, suspiram, líricas e veadíssimas, que la chair est triste e que Rimbaud ou Drummond ou Beckett já eram. Tudo “já era” no “é” do presente contínuo da troca mercantil e tudo devém “já era” nos fluxos do seu estético anestésico. O último poema do livro, “Página órfã”, indicia as condições da sua leitura em 2007: “Nem uma dupla cabeça de Hermes/ entenderia aquele homem/ dormindo na cadeira/ sobre o entulho e o lixo,/ beco sem saída, página órfã,/ nunca, imitação de vida”.
Nadando contra a maré e caçando lebre com boi, Bonvicino é moderno. Intensifica a barbárie da referência e dramatiza pressupostos estéticos e políticos de sua poesia sabendo coisas fundamentais, hoje arquivadas. Sabe que a liberdade livre da poesia é memória de regras rigorosas aplicadas à racionalização negativa da forma. Sabe que a aplicação das regras é memória do sofrimento – “Andromaque, je pense à vous” –, rimando tédio, angústia, desprezo e liberdade. Sabe que para gozar é preciso matar o Pai. E que muitos se matam porque querem viver. Leminski, por exemplo, viu que não tinha mais para onde ir e fez do auto-apodrecimento um desregramento de todos os sentidos. No seu devir-favela-gueto, adubou o cadáver futuro com fumo uísque alguma poesia and something else. Sabe que Leminski foi um cara bonito legal coerente admirável. Sabe que nine out of ten computers are infected with dollars and narcisism. Que Rimbaud never more. Que hoje o corvo não pousa mais no busto de Palas. Que nem tem idéia do que é Palas, nem precisa, mas continua grasnando que Leminski foi estúpido porque não foi realista. Sabe que o corvo vai ao que interessa. Sabe que o corvo é vil. Sabe que esta é uma sociedade de corvos. Sabe que o imaginário desta sociedade é limitado ao sul pelo shopping, a oeste pela polícia, a leste pela religião. Sabe que não tem norte, que não é livre, que não tem imaginação, que ignora radicalmente o simbólico, que não deseja poesia ou o que já se chamou “o espírito”. Sabe que o talão de cheque libera e o revólver compensa o retorno do recalcado. Sabe que em 2007 o desejo de emagrecer corresponde ao desejo de desmaterialização do corpo internáutico na grande saúde da eficiência no trabalho. Sabe que sua poesia é mortal e precária, insignificante. Sabe que deve insistir: “me tenha impregnado da praga das palavras” (“Prosa”). Sabe que é ineficaz o que o poeta pode dizer da miséria, que a palavra cão não morde, que a poesia é uma espécie de miséria incluída na miséria maior que a desdenha e ignora. Sabendo tanta coisa, sabe principalmente que o poema sempre se vende como mercadoria. E que poemas pra valer sempre são mercadoria como a palavra “rosa” é a flor ártica que não é flor. Em 2007, suspenso nas bordas do buraco negro de seu saber, sabe principalmente o que não quer. Não quer a beleza, cosmético; não quer experimentalismo, pois não há experiências reais; não quer a concretagem da metalinguagem, pois a realidade não é texto; não quer o pastiche, não quer a citação, não quer a estilização, não quer a imitação à moda de, não quer o neo-neo do retrô geral. Principalmente, não quer o individual regressivo e apático. Deseja o outro do recalcado, o impessoal, o neutro, o duro, o seco, do movimento negativo para além das convenções do nenhum gosto do nenhum estilo contemporâneo. Como aquele pássaro doido e azul que se chocou contra a asa do avião, sua poesia é negação.
Há método em sua mistura. Bonvicino compõe a referência despedaçada de Página órfã como um evangelho do feio cuja boa-nova é obra, no sentido literal do termo, merda e morte. A referência é eficaz, pois a feiúra do seu horror aparece como ainda apta para deformar e incomodar, com o mal-estar da sua sombria agitação, o tempo raso do leitor sem experiência de passado e expectativa de futuro. A referência é eficaz principalmente porque autodeformante: suas posições, instantes, corpos, coisas e estados de coisas são vis ou tendem para o rebaixamento, como restos destituídos de profundidade, elevação, liberdade e sentido temporal definido. O tempo da referência é o de uma superfície parada e ondulatória, como a de um rio-esgoto latino-americano ou africano ou asiático, incessantemente arrepiada por modulações transitórias como ondas de choque fazendo vibrar restos de resíduos misturados no sangue da violência e na sacarina do kitsch de várias fontes. A experiência desse tempo na leitura faz pensar no conceito deleuziano do “tempo-peneira” das sociedades de controle pós-modernas: o tempo feixe contínuo de trocas flutuantes sem orientação definida de futuro e memória de passado em que os indivíduos tornaram-se dividuais, objetos de forças anônimas que engatam o desejo dividido em coisas arcaicas da pulsão de morte, e as massas humanas, aglutinações de divíduos como amostras, dados, cifras e mercados, estimuladas a gozar as alegrias do marketing. Caracterizada pelo naturalismo brutalista e apático do imaginário-shopping que unifica observador e coisa observada em afetos parciais descartáveis, a referência é “beco sem saída” e “nunca” de um não-lugar de desamor onde se exerce uma história natural da decomposição.
A efetuação da sua bruteza apática é intensa e vívida; enfatiza o sórdido, áspero e porco dos contrastes. Sua sordidez sem esperança poderia fazer supor um gosto pelo resíduo só momentaneamente esquecido nos poemas em que a natureza que resta é descrita em sua inumanidade (“Petróglifo”, “Agonia”) de matéria ainda não transformada em ruína (“Extinção”). Não se trata de “gosto”, mas de efeito de decomposição programático, que começa com a dissolução do sujeito de enunciação. Não é pleno, a não ser de angústia e náusea, não ocupa nenhuma posição exterior e superior de “verdade” moral ou “certeza” política quando enuncia pedaços. A enunciação é constativa e inclui-se como um deles no espetáculo dos resíduos, marcando sua diferença pela autodecomposição de si mesma nos fluxos das pulsões depressivas da coisa observada. O “eu” escorre nas formas dos pedaços de uma terceira pessoa impessoal que constata: “Seus dentes poderiam fazer merchandising/ de maconha/ embora façam de Colgate/ dos lóbulos caem pingentes/ to sell ou vender/ seus pés não pisam em piso falso/ e andam descalços/ num clipe ou num filme” (“Roupoema”). Por vezes, a enunciação dramatiza a voz em primeira pessoa de um spam que emite resíduos de sexo onde Deus finalmente revela ter alguma utilidade: “pela frente justo/ penetra no meu/ como réptil bruto/ esmagando o colo/ do meu útero/ onde neste canto agudo/ súbito Deus é útil” (“Deus”). Ou monologa: “Fedendo a cigarro e a mim mesmo/ cruzo uma avenida/ ao anoitecer/ sirenes, carros/ vozes abafadas” (“Caminho de hamster”). A simultaneidade dos espaços, os pedaços disparatados e os afetos das experiências são modulados pela mesma energia apática. Repete-se da superfície da palavra para o silêncio dos intervalos, muda de posição de um ponto para outro, de um instante para outro, idêntica no diverso, como esses rios de São Paulo que continuamente passam coalhados do que sobrou, sem que a essência de seu perfume de classe dominante passe.
Não seria necessário dizer que a referência dos poemas não é prévia, mas efetuada por eles como agenciamento de significações que só existem na leitura. Como o leitor reconhece muitas das significações, que são as da existência Junkspace contemporânea, poderá supor que Página órfã é reprodução naturalista, “imitação da vida”. E se equivocará, pois é poesia moderna: autoconsciente dos seus processos produtivos, não “imitação da vida”, mas “imitação de vida”, como mimese de vida da referência efetuada na leitura. Logo, mais fundamental que “o quê” os poemas dizem é o seu “como”: o estilo. Seria possível lê-los como se os pedaços fossem ready made, fórmulas prontas, que o poeta transferiria de textos poéticos modernos e das linguagens dos media, refuncionalizando-as em novas funções compositivas. A hipótese é pertinente, por exemplo, quando cita grifes de mercadorias contemporâneas repolitizando-as para compor um caráter ou uma ação degradados. Mas não se trata apenas de agenciamento de matérias acabadas, pois Bonvicino faz contínuas menções teóricas à palavra como elemento construtivo da realidade do possível de sua arte. As menções evidenciam que sua poesia não reproduz simplesmente o que provém de uma tradição qualquer conferindo-lhe novas funções, mas resulta de seu posicionamento conscientemente crítico na chamada “tradição” da poesia moderna brasileira e estrangeira como dramatização contínua dos procedimentos com que constrói a referência, como a justaposição, a falta de pontuação, a descontinuidade sintática, a montagem, a mistura estilística, as incongruências semânticas, o contraste, a síntese e o silêncio, evidenciando uma concepção determinada de “palavra poética” que, podendo incluir o procedimento de ready made, não se reduz a ele. No poema “Morte”, lê-se:
nossos filhos da puta
vende-se
Est
sucata de verbo pedaços
Eficazes, os pedaços são das melhores coisas do livro. A fórmula “nossos filhos da puta” traz para perto do leitor, como propriedade partilhada ou comum, “nossos”, tipos e ações que se acredita correntemente distantes de “nós”, por exemplo os varões de Plutarco da chamada “vida pública” brasileira. O pronome possessivo constitui a sordidez como o que ela é literalmente no país – nossa sordidez corporativa –, propondo que também os laços particulares da nossa honesta vida de relação estão determinados pela mercadoria e como mercadoria: “vende-se”. A dissolução semântica dos laços é diagramada pela justaposição sintática dos pedaços que efetuam a não-conexão aparente. O efeito é intensificado pela justaposição do latim est, verbo essencial da predicação do ser ou da qualidade da presença do presente na coisa predicada: não Idéia, Ser, Deus, Razão, Revolução, mas restos de coisas, homens e linguagens produzidos por processos mercantis de “nossos filhos da puta” que os transformam em “sucata de verbo pedaços”. A fórmula “sucata de verbo pedaços” é auto-referencial, pois ela mesma é “sucata de verbo pedaços”. Faz menção a si mesma, propondo o que também se acha nos outros poemas: a palavra poética é um resíduo da memória da experiência histórica da poesia, “pedaços”, que intensificam a significação de fragmentos de poetas modernos, como o “para nós só há tentativa”, de T. S. Eliot, ou o “barro sem esperança de escultura”, de Drummond. A intensificação afirma-se como poética programaticamente desarmônica que nega antes de tudo as funções normalizadoras da poesia em tempos pós-modernos. É o que se lê em “Manuscrito”: “palavras/ uma garrafa lançada ao mar? não/ palavras/ uma garrafa atirada contra o espelho”. A definição da função da palavra poética é negativa: não garrafa lançada ao mar, como expressão e comunicação. A referência efetuada nos poemas é a de um mundo que comunica a comunicação, nivelando todas as experiências no no man is an island porque não há segredo: a mercadoria constitui o mais íntimo de todos. Todo homem desse mundo é evidentemente uma ilha, e as palavras são garrafa atirada contra o espelho. O espelho, figura clássica da mimese, aqui é signo do narcisismo da cultura contemporânea. Novamente, a menção à palavra evidencia pressupostos poéticos e políticos em níveis operatórios de sentido: a palavra é técnica, material e procedimento do trabalho de transformação de linguagens brutas e linguagens poéticas em linguagem artística; política, intervenção moderna que recusa o mimetismo generalizado; pragmática, pois, assim como as forças empresariais agem sobre os corpos produzindo dejetos, a palavra poética age sobre o leitor arruinando seu imaginário. Em “Sinopse”, “palavras deflagram carcaças”. A formulação é condensada e significa a referência, onde palavras de ordem, como as da música do terrorismo norte-americano durante a tortura de prisioneiros árabes – “Te estrangulei até a morte,/ depois quebrei tuas pernas” – produzem carcaças literais. Mas também a memória da carcaça da negatividade da poesia moderna hoje arquivada como fóssil. A dupla deflagração se lê “In a station of the metro”: o poema de Pound, “The apparition of these faces in the crowd:/ Petals on a wet, black bough”, é incluído como parte do texto, sendo produzida ativamente como resto ou carcaça moderna pela outra parte, “tradução” up-to-date que estabelece equivalências descendentes – “Abruptos tiras [= the apparition] ocultos na multidão [= in the crowd]; Tiros na nuca [= petals], um corpo espúrio no chão [= on a wet, black bough]”. Ao mesmo tempo, os dois versos finais efetuam a referência pós-moderna do poema: a morte policial dos Jean Charles de Menezes contemporâneos. A mesma transformação negativa se lê em “The new alphabet”, rol de termos e fórmulas de A a Z, que cita o “Isso é aquilo” drummondiano, substituindo as ambigüidades dos acasos da composição por sínteses parciais negativas ou definições negativas da experiência brasileira contemporânea. Por exemplo, a letra E: “estupro”; M: “mendingo, mendigo, mêndigo, mendrugo”; Q: “que se fodam!; T: “traficantes quebram as asas do uirapuru para realçar a beleza de sua coroa azul”.
Poeta culto, Bonvicino escreve conhecendo a chamada “tradição do novo da poesia moderna”: vanguardas dos anos 50, João Cabral, Murilo Mendes, Drummond, Oswald de Andrade, Ezra Pound, T. S. Eliot, William Carlos Williams, Beckett e um grande etc. Não é poeta à caça de imagens, mas destruidor de imagens. A literalidade de seu discurso busca evidenciar o que importa, o princípio que regula a presença do presente. Recusa o sentido figurado, principalmente a metáfora. Com exceção do poema em que formigas são alegorias, a dominante de sua poesia é a palavra em estado de everyday use. Não acredita no “indizível”; por isso mesmo, a auto-referência da palavra faz menção ao silêncio. Sabe com Wittgenstein que não há nada para dizer senão o que se pode dizer. A interdição de dizer mais do que o dizer pode dizer compõe nos poemas um exterior vazio e indizível não como substância, mas como efeito simbólico dos limites da operação. Aqui, sua poesia constrói os espaços entre os pedaços justapostos como lugar de uma actio, uma retórica parcial de ações não-ditas, como interrupção do significado, suspensão valorativa, desfalecimento do sentido, elisão irônica, contra-efetuação etc., que se dão à leitura como um resto material do gesto poético irredutível a significados lingüísticos ou à semantização do discurso. Se a justaposição de pedaços diz o despedaçamento, os espaços vazios entre eles fazem o que não dizem: espaços vazios e pedaços são funcionalmente homólogos, produzindo a referência despedaçada e o modo negativo da sua experiência, que condensa a intensidade do horror de experiências inomináveis e mortais.
Os poemas são satíricos, entendendo-se “satírico” na acepção antiga de “mescla estilística”, não na acepção iluminista e pós-iluminista da crítica moral determinada por “verdades”. A mescla estilística põe em cena representações contrastantes de registros discursivos da cultura espetacular. David Wellbery lembra que a representação teatral é verdadeira não porque duplica o real, mas porque presenta a sua teatralidade. Como composição sensível de pedaços de coisas e de estados de coisas disparatados, a mescla estilística dramatiza a teatralidade da espetacularização da vida Junkspace, fazendo falar as parcialidades de seus registros discursivos. Para fazê-lo, também se autodramatiza, evidenciando sua particularidade de poesia datada.
Um grego antigo dizia que é o olho que tem necessidade de beleza, pois o intelecto goza com a habilidade do artifício que inventa coisas feias. Auden dizia o mesmo de modo mais poético: o poeta nos faz alegres com a felicidade da forma que figura suas maiores dores. Os pedaços dos poemas de Página órfã só funcionam poeticamente porque se referem uns aos outros como elementos construtivos do poema particular em que ocorrem; como elementos que referem outros, são imediatamente auto-referenciais. Por serem aplicados como integração de descontinuidades e incongruências discursivas, não pressupõem o ponto de vista unitário de um “eu” expressivo, mas têm a objetividade distanciada de elementos que, abstraídos de diversos lugares sociais, são construtivamente aplicados como mescla estilística que efetua a referência incongruente. Cada um deles põe em cena temporalidades disparatadas de eventos e coisas da matéria social donde o poeta os abstrai, sintetizando-os como definições sensíveis. Por exemplo: “Sex is sx/ O esperma congelado dos mamutes/ O uivo trêmulo revela tristeza e queixa/ Há um movimento para liquidar os cães loucos na China”. Justapostos como pedaços auto-referenciais que se interdefinem no espaço do poema, compõem a auto-referência de si mesmos e do texto como dramatização de temas do imaginário pós-moderno, como o da função da arte, da cooptação do artista, da apatia das formas regressivas com que se exerce e sofre a violência etc. Simultaneamente, põem em cena o próprio processo poético que inventa sua dramatização. Se a significação efetuada em cada pedaço é aleatória e deformada, o processo de repetição do modo de compor por justaposição de pedaços é sistemático e programático, dramatizando um projeto poético coerente. Sabemos desde os gregos que o pintor que pinta com arte um focinho torto não é inepto. Bonvicino é pintor quando compõe com artifício programaticamente deformado suas naturezas-mortas. Não há método na inconsciência de seus personagens vivendo o imaginário da referência pós-moderna. Mas há método na mistura poética que os inventa como resíduos-metáforas da inconsciência do imaginário e da destruição conscientemente programada do seu tempo-Bush.
A autoconsciência do despedaçamento programático se evidencia também na disposição dos poemas no livro: os dois primeiros efetuam referências à natureza; o quarto, “Azulejo”, sintetiza a experiência existencial das perdas de todo homem, propondo que a memória não é reprodutiva, mas produção: do duplo silêncio ininterrupto da morte de pai e mãe do sujeito da enunciação sobram “cacos ásperos/ que, agora,/ num ato de acúmulo,/ rejunto”. O quinto, “Letra”, trata da autonomia artística e do artista cooptado, antecipando a figuração do imaginário Junkspace nos seguintes, “O lixo”, “Rascunho”, “Anúncio”, “Morte”. O mesmo ato de acúmulo enunciado em “Azulejo” os compõe, rejuntando referências de coisas vis e ações violentas. O seguinte, “Caminho de hamster”, revisita “A flor e a náusea”. Exacerba a desesperança, nenhuma flor fura o asfalto, e o poema termina “na próxima linha”, que é a última. “Enésima potência”, aparentemente sobre formigas, é alegoria das massas contemporâneas. De todos os poemas do livro, é o menos convincente, e não por ser alegórico, mas porque sua alegoria é transparente, óbvia e exterior. “Grafites”, cuja referência é o México, interrompe o tom descendente com poemas curtos, quase sentenças – “El que no trabaja/ Que no coma” –, alguns quase-haicais – “Os maias estão desatrelados/ do meu modo de vida/ os maias estão nas estrelas”, seguidos de “Visitar um cacto”. Homenagem a João Cabral, descasca fenomenologicamente a palavra “cacto” em planos de sínteses precisas que efetuam o espinho na forma: “as palavras rasgos de cacto/ arranhos por todos os lados/ o cacto, sempre em si,/ sem a possibilidade/ de vizinho” ou “semillas de tuna/ raspam-se em sua pronúncia/ com o cacto/ no hay paso”. O imaginário Junkspace retorna em “Cambio, exchange” e “Concerto”. “Resgate” dialoga com “Caminho de hamster”, “Azulejo” e com “Legendas do muro”, adiante. Até o final, a natureza objeto de predação, a violência e a apatia do espaço-lixo e do imaginário contemporâneos, a experiência existencial da angústia, a palavra poética e seu silêncio insubstancial, o sentido e a função da poesia num tempo que a ignora compõem as linhas de força dessa poesia. Nela, o olho da enunciação prefere a natureza-morta do corpo capitalista, que vem para a frente da cena em poemas como “Roupoema” e os excelentes “It’s not looking great!”, “Vestíbulo” e “Duas linhas”. Ou na sutil formulação do fetichismo da mercadoria de “Indisciplina”, em que roupas e grifes são vivas, possuindo homens e mulheres com as fantasmagorias de suas marcas.
O exemplar – espécime, ícone, totem, natureza-morta – do corpo-capitalista contemporâneo é o corpo da modelo. (Em “Definitions of Brazil”, escrito com Charles Bernstein, o corpo político do país é o modelo da modelo: “Brazil is the model of a model”.) Bonvicino inventa-o como superfície plástica, passiva como uma massa de moldar, onde atua a mimese impessoal de pedaços do imaginário. A mimese é uma mímica ventríloqua que, da cabeça aos pés, imita signos auráticos de marcas, grifes, cifras, assinaturas, gestos, estilos, como ectoplasmas de vozes da moda, do sexo, do dinheiro, do poder e da palavra mágica, “sucesso”, falando-se a si mesmas como matéria autônoma baixada no corpo-médium. Aqui, a questão que sua poesia faz ao leitor é teórica e técnica: como pintar eficazmente uma natureza-morta com palavras, quando o objeto é uma falta de ser que se dá à percepção como objeto-fluxo cambiante, modelado por objetos-parciais sem unidade, só reconhecíveis nos resíduos deformados das inscrições de forças anônimas? Qualquer um sabe na própria pele que o corpo é objeto radicalmente finito. É impossível pensá-lo num grau zero de si mesmo, pois não há corpo natural. Antes de nascer, a pele é tatuada pela dominação do nome do Pai, da família, da raça, da religião, da política, das contingências. Em Página órfã, a pele da modelo sintetiza o modo hoje universal que faz da pele humana a superfície da inscrição contínua de fluxos miméticos que efetuam o corpo como continuidade da troca mercantil, desmemória e alienação da historicidade da sua experiência.
Bonvicino despedaça a referência para evidenciar que o corpo da modelo tem alma. Evidentemente, exterior, achatada e ondulatória, superfície moldável e remoldável pelo botox e silicone do desejo regressivo. Sem experiência do passado e sem expectativa de futuro, alma-modelo de toda a cultura e “espírito”, emite signos de Individualidade única. Narcísica, cheia de si sem si, como um deus arcaico, prepotente e pueril. As forças industriais modelam a alma de Kaetán (“Letra”), Kate (“It’s not looking great!”), da “mula de Versace” (“Duas linhas”), dos marginais e das putinhas habitados pelas grifes (“Indisciplina”), de Diana Dondoe (“Vestíbulo”), da top-problema (“Um poema”) e de outros personagens que têm por modelo a modelo. As forças os deformam parcialmente em personalidades únicas, dotando-os de funções apáticas, fazendo-os psicografar a espiritualidade das mercadorias incessantemente descartadas. O movimento estático só se aquieta com deformações mais definitivas, como a morte. Os efeitos imaginários que personalizam corpos como Individualidade única são terríveis: anônimos, impessoais, são metódicos, com eficácia técnica calculada milimetricamente: a fome é a força que se aplica metodicamente a corpos já marcados pela classe para produzir produtos especiais, desempregados, criminosos, crianças abandonadas, mendigos como mortos individualizados; o gás sarin e o gás mostarda aplicam-se metodicamente a corpos já marcados pela raça e pela religião para obter convulsões em massa individualizadas como mortes; o silicone o botox a cirurgia plástica aplicam-se metodicamente sobre corpos metodicamente cadaverizados de modelos atrizes artistas stars políticos que devêm corpos-travestis parcialmente, corpos-gay parcialmente, corpos-puta parcialmente, corpos-teen parcialmente, corpos-animal parcialmente, corpos-Maseratti parcialmente, corpos-cerveja parcialmente, corpos-alpargata parcialmente, corpos-compra-e-venda totalmente individualizados como “nossos filhos da puta”; o carro-bomba e o míssil e a tortura e a falsificação das palavras se aplicam metodicamente em massas de corpos para efetuar corpos-inimigos como corpos-pedaços e corpos-cadáveres individualizados que se aplicam metodicamente na produção de corpos-fotos e corpos-vídeos e corpos-filmes individualizados para produzir corpos-consumidores de imitações individualizadas como mortes e espetacularização da morte etc.
Bonvicino faz corresponder à apatia dessa maldade ativamente produtora de restos a alienação simbólica de suas vítimas autocomplacentes. Nunca naturais, as forças são artifícios e artefatos simbólicos industrialmente aplicados como produção de individualizações imaginárias. O simbólico é sempre particular, porque arbitrário; a ignorância dele é alienação que ignora a morte ou a historicidade de todo tempo. Na justaposição de pedaços, a poesia de Bonvicino mostra que nenhuma das forças individualiza ao produzir a Individualidade única, pois são regressivas e individualizam unificando pedaços em todos gregários, fascistas ou tendentes ao fascismo, como raça, cor, religião, poder, sexo normal, sexo perverso, “eu”. É o que sua ironia angustiada mostra friamente quando o corpo da modelo modela o corpo-narciso do artista contemporâneo. Esnobe e pernóstico, só se vê de perfil. Desdenha intransitivamente o não-eu que não espelha sua Individualidade única. Sustenta o universo com o arco cético das sobrancelhas depiladas. Puxa o saco dos “nossos filhos da puta” do Estado. Perfuma o ar com o Eternity do bom-mocismo. Declara o desejo de subserviência gregária. Demonstra a servidão voluntária no nó da gravata executiva que re-al-men-te despreza, pois continua monstro filosófico de sensibilidade única para proveito da massa que infelizmente não come o biscoito fino que fabrica. Não há ironia como sentido figurado negativo de um sentido próprio literal, como inversão ou negação do enunciado. Não postula verdades corretoras. Mas ironia feroz da demonstração que elenca processos de acumulação espetacular de signos dos códigos de barra tatuados nos corpos. Cada pedacinho desmemoriado deles é uma definição sensível e sintética das essências dos mass media. A modelo que se masturba na neve em Aspen encena a cena que viu encenada não se lembra onde redesfilmada num remake “make it new!” do cinema. A modelo move os lábios, chupa no ar blowjob ausente que viu imitado no programa que simulava sexo oral na tevê. A modelo olha sensual em close up e fading off com olhos da foto de fotos. A polícia imita seriados Swat aliás Alias quando mata. Guerrilheiros detonam edificações como o papelão rasgado do cinema-catástrofe. Sucateiros conversam na calçada como num filme na tevê. O umbiguinho depiladinho da atrizinha diz “me coma!” sendo falado pelo anúncio que repete signos sensuais da modelo que se masturba em Aspen movendo lábios que olham sensuais o blowjob de policiais que matam ou aliás imitam os que detonam torres conversando na calçada com o olhar sensual da modelo que tem o umbiguinho depiladinho dizendo que também a poesia de Bonvicino é resíduo.
Como resto de uma experiência poético-política, ela dramatiza a dualidade da arte moderna lembrada por Deleuze: é uma teoria da sensibilidade, como forma da experiência individual possível, e uma teoria da poesia, como reflexão da experiência social real. Nos poemas de Página órfã, as teorias nunca se unem. Como a poesia de autores modernos anteriores, os poemas demonstram que hoje as condições individuais da experiência poética não são as condições da experiência social real. Por isso mesmo, a dissonância de sensibilidade e razão, de possível e real, de dramatização e referência que os ordena como despedaçamento é o seu conteúdo de verdade que continua afirmando que esta é uma sociedade de corvos.