O primeiro volume da “Anthology of World Poetry of the 20th Century”, que acaba de ser lançado nos EUA (Green Integer, 199 páginas, $15,95), organizado pelo dramaturgo, poeta e ensaista Douglas Messerli, de Los Angeles, surpreende como ato crítico, em si.
O editor rompe, no caso, com visões predominantemente anglocêntricas, como as de Harold Bloom, e, de modo diverso do autor de “O Cânone Ocidental”, procura reunir poetas que se caracterizaram como marcadamente renovadores e ou inovadores em suas respectivas culturas. Produz, em consequência, a “destruição” do conceito totalitário de “cânone”, reaproximando a poesia da idéia descentrada de liberdade, o que não é pouco, num período no qual a arte perdeu seu caráter de resistência, para alinhar-se às “subvenções”, e a um papel complementar – decorativo – do mundo político e econômico.
É significativo e justo que, da língua portuguesa, sempre esquecida nessas coletâneas , ou representada por Fernando Pessoa, o organizador tenha escolhido o “inóbvio”, do ponto de vista internacional, João Cabral de Melo Neto (1920/1999) e que, ao mesmo tempo, não tenha incluido nenhum autor português. A antologia centra-se, basicamente, no que se pode chamar de “segunda geração modernista mundial”, explicando-se, assim, as ausências de Pessoa e Sá-Carneiro e, por isso mesmo, fazendo justiça aos brasileiros, que são, a partir do modernismo de 1922, mais inventivos e relevantes do que os portugueses, em qualquer cenário.
A escolha de Cabral justifica-se, a meu ver, em virtude de sua obra poder ser considerada como espécie de síntese de todas as principais tendências da poesia brasileira do século XX, embora pudessem estar lá também gigantes como Carlos Drummond de Andrade ou Murilo Mendes.
Há apenas um norte-americano: Jackson MacLow, nascido em 1922. Dois falantes de alemão: a poeta Ingeborg Bachman, da Áustria, e Gunther Eich, da Alemanha, ambos do vanguardista “Gruppe 47”. Franceses, quase um: o franco-lituano O.V. de Miloz. Esta antologia, que invoca, para si, mais a raiz latina da palavra, “selecta” (seleta), do que a grega, “análekos” (recolhido), privilegia os escritores de línguas não centrais, relativizando, como já se anotou, perspectivas etnocêntricas.
Messerli propõe uma “leitura” transnacional e metacrítica da poesia(para além das catalogações já feitas dos movimentos). E particularmente dos desdobramentos do modernismo (movimento que eclodiu nos mais diversos países, inclusive, no Oriente), num primeiro passo para a construção de uma história mais complexa da literatura do século.O editor não se limita, por isso, a permanecer no Ocidente, selecionando três japoneses: Hagiwara Sakutarõ, Hayashi Fumiko e Takahashi Matsuo. É curioso ler os japoneses ao lado de suecos como Gunnar Ekelof e Artur Lundkvist. Ou ao lado de italianos como Rocco Scotellaro e Amelia Rosseli, filha da grande líder antifacista Carlo Rosseli. E ou ainda de esponhóis como o recém morto Rafael Alberti (geração de Federico Garcia Lorca) e Ángel Gonzalez, vivo. Está, no livro, o igualmente “inóbvio” catalão J. V. Foix e não, por exemplo, o mediano Joan Brossa (aqui, no Brasil, relacionado a Cabral). Está lá o belga Henri Michaux. Assim, ficam todos os “ismos” (surrealismo, construtivismo, acmeismo), minimizados, num raio centrífugo duplo: o de afastar os autores de suas “escolas” e de dar a eles, em correspondência à suas originalidades, um “lugar” que nunca habitaram e sempre almejaram e mereceram.
É, todavia, “desconcertante” poder ler João Cabral ao lado do russo Ossip Maldelstan (1891/1938). Este escrevendo sobre “Leningrado” (“…para ter certeza que os incríveis presentes de Pushkin / não cairam nas mãos de parasitas…”) e aquele a respeito da “paisagem do Capibaribe”, Recife: “ … Ele tinha algo, então, / da estagnação de um louco. Algo da estagnação / do hospital, da penitenciária, dos asilos …” (“Cão sem plumas”, 1949/1950).
Ainda mais “pertubador”, superando interpretações , é ver também reunidos mestre e “discípulo”, o espanhol Jorge Guillén (1893/1984) e o próprio João Cabral, que o teve como modelo durante quase toda a sua obra. Trata-se de, talvez, a mais aguda homenagem que se tenha feito ao autor de “A Educação pela pedra”, no seu intenso diálogo (“o pernambucano de Málaga”) com a Espanha e com o mundo.
TRECHOS DA ANTOLOGIA
OS NOMES
Aurora. O horizonte
Entreabre pálpebras
E começa a ver. O que? Nomes.
Estão sobre a pátina
Das coisas. A rosa
Se chama todavia
Hoje rosa, e a memória
De seu trânsito, aflita,
Aflita, para viver mais.
Ao largo amor nos alce
Esta pujança agraz
Do instante, tão ágil
Que, ao atingir a meta,
Corre a impor Depois!
Alerta, alerta, alerta
Eu serei, eu serei
E as rosas? Cílios
Cerrados: horizonte
Final.Ao acaso, nada?
No entanto, os nomes.
JORGE GUILLÉN
Tradução: Régis Bonvicino
De Escritos com o corpo
Está, hoje que não está
numa memória mais de fora.
De fora: como se estivesse
num tipo externo de memória.
Numa memória para o corpo
externa ao corpo, como bolsa,
Que como bolsa, a certos gestos,
o corpo que a leva abalroa.
Memória exterior ao corpo
e não da que de dentro aflora;
E que, feita que é para o corpo,
carrega presenças corpóreas.
JOÃO CABRAL (Serial/ 1959/1961)
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Régis Bonvicino