Baseio-me, aqui, em conceitos de Herbert Marcuse, que considero atuais. A relação entre os fins culturais e os meios factuais são raramente harmônicos. Esta tensão se exprime na distinção histórica entre cultura e civilização, segundo a qual “a cultura se relaciona com uma dimensão superior de autonomia e da realização humana”, enquanto a civilização opera no reino da necessidade, dentro do qual o homem não é efetivamente ele mesmo mas um outro – um heterônimo a serviço.
Neste sentido, o papel da arte e da cultura é o de explicitar esta tensão e não o de reprimí-la. Há, cada vez mais, tendência de supressão de tal distinção, que implica, na prática, em “renúncia cultural”. E a sociedade, assim, “tende a tornar-se totalitária”, no dizer correto de Marcuse.
O apagamento das fronteiras entre cultura e civilização – e a instrumentalização daquela para o mercado e outros fins – é um dos projetos da civilização tecnológica (às vezes sob inflexões “sociais”, como no Brasil carente de hoje), que quer eliminar os objetivos transcendentes da cultura – caberia então possivelmente ao Estado (dinheiro público) resgatá-los.
São, por isso, preocupantes certas declarações da Secretária da Cultura de São Paulo, Dra. Cláudia Costin. Ela afirma, em seu discurso de posse, que “a possibilibilidade de tornar a política cultural um instrumento de inclusão social é o que mais me encanta”, complementando: “quero, com o apoio dos funcionários, ajudar a vencer a guerra contra o tráfico….”. Aqui – com todo o respeito – se tem um caso de, sob o amparo de uma “causa nobre”, consensual, distorcer-se, a função do Estado na área da cultura. O narcotráfico deve ser combatido pela Justiça, por Secretários de Segurança e pela polícia (especialistas que podem trazer tranquilidade na ação). Não faz parte dos fins transcedentes da cultura o seu combate, por mais doloroso que isto soe. E nem mesmo a “inclusão social”, tarefa de áreas operacionais de um governo. O que há, com este traço de programa, é indicação de “exclusão cultural”.
Espanta quando diz a Dra. Costin que “pretende adotar uma concepção de política cultural integrada, em que as diferentes áreas que a integram, associam-se para compor um todo orgânico, fugindo ao que Edgar Morin chamou de fragmentação do saber e da vida”. Aí está o ponto central: o da eliminação de toda a distinção entre cultura e civilização, da repressão desta tensão, desta feita, em nome do Estado.
Outras assertivas da Secretária ( que há pouco discutia liquidação de contratos de empresas estrangeiras de energia com o coordenador da transição – hoje o Ministro Palocci ) também preocupam: como a de transformar o Estado de São Paulo em “centro de produção de ‘boa’ literatura”. Não acredito que ela desconheça que São Paulo é o lugar onde se gestaram o modernismo, o concretismo e o tropicalismo. O Estado dirá então, a partir de agora, o que é boa e má literatura?.
Causa apreensão igualmente quando a Dra. Costin elogia, a propósito do incremento do Museu do Imigrante e da riqueza da miscigenação paulistas, “a geléia geral de nossa cultura”. A expressão foi cunhada por Décio Pignatari/Torquato Neto para denunciar justamente a ausência de projetos consistentes ec amorfia da sociedade… Segundo Pignatari, alguém tem que fazer o “papel de medula e osso, na geléia geral brasileira”. Creio, modestamente, que cabe à Secretária – uma boa economista – refletir sobre o que lançou e se abrir para a construção de um programa democrático e transcendente – medula e osso, de longo prazo – para a cultura de São Paulo, sem o qual não pode fazer qualquer administração.
Régis Bonvicino