A proximidade do fim do século e também do fim do milênio não afeta, aparentemente, em nada a função da poesia no quadro geral das literaturas e das culturas. A poesia não tem, propriamente, uma função. Ela é inútil, não se constituindo em encargo ou serviço. Sua inutilidade atravessa regimes políticos diversos bem como diferentes economias. Regimes políticos totalitários têm, muitas vezes, o poder de explicitar a capacidade de resistência da poesia e dos poetas mas não chegam efetivamente a alterar a função da poesia. Talvez, a poesia tenha uma função no quadro das artes e da cultura: a de ser manifestação inútil (“teoria do inutensílio”, de Paulo Leminski), sem presença no dia-a-dia das pessoas, o que lhe confere liberdade e arbitrariedade. Poesia não tem valor de troca. É mais ou menos como nos versos de William Carlos Williams: “The rose is obsolete / but each petal ends in an edge…”, versos que iniciam o poema “The Rose”, publicado no livro experimentalista “Spring and All” (1923). Tudo o que é inútil acaba adquirindo a condição de obsoleto, num mundo francamente utilitarista. Mas, cada pétala finda num abismo, num limite extremo. A poesia é um desses limites extremos, que — ao mesmo tempo — fascina e aborrece . O tempo da poesia é, por exemplo, diferente do tempo da prosa. A liberdade da poesia é diversa também da liberdade da prosa ou das artes plásticas. A poesia está — hoje — dissociada da evolução das línguas. Não tem, assim, nem mesmo sua antiga função de estimular uma língua. Papel desempenhado pela televisão, pelo rádio, pelos jornais e um pouco pelo cinema. Há um esvaziamento de funções da poesia neste final de século e de milênio. De algum modo, ela — a poesia — se assemelha, cada vez mais, ao pássaro assassinado pelo gato ( Óleo sobre tela, de Picasso, de 1939 ). Lua entre as quatro patas. E pontiagudas unhas. Telhado somente insinuado por dois ou três ângulos. Gato sujo de barro. O gato, com um olho exaltado e outro de vidro, morde as penas da asa do pássaro. Pássaro sem vôo, rasgado pelos dentes do felino. Gato desestetizado, assassinando um pássaro preto. Violência, morte e impotência.
Estas situações, de inutilidade, de obsolecência, de arbitrariedade, de violência e de morte, definem um pouco o que é a poesia — neste final de século/milênio. Talvez, resida aí sua função: a de enfrentar situações extremas, de sobreviver em abismos, em limites — sem objetos, objetivos e referências imediatas. Nesta perspectiva, o início do poema “Dissolução”, de Carlos Drummond de Andrade, incluido em sua coletânea “Claro Enigma” (1951), coopera na definição do lugar ocupado pelo fenômeno poético no mundo: “Escurece, e não me seduz/tactear sequer uma lâmpada / Pois que aprouve ao dia findar, /aceito a noite/E com ela aceito que brote/uma ordem outra de seres/e coisas não figuradas…”.
Interessa à poesia — hoje — na perspectiva dialética tradição/inovação (e só a poesia inovadora poderá sobreviver, inovadora também em relação aos “anticânones” forjados por movimentos da década de 50 e 60) esta ordem outra de seres e coisas não figuradas. A existência irrreal da poesia (neste mundo cada vez mais dominado pelo capitalismo e pelos mercados globais) propõe a ela — poesia — que se defronte com questões que ninguém mais, nem mesmo a filosofia, quer se defrontar: o insucesso, a obsolecência, a violência, a morte, a impotência, o isolamento — uma ordem outra de seres . Tanto melhor, será a poesia que se dispuser a responder estas questões. Ou, entre nós, por exemplo, observar o itinerário de desconstrutor de ortodoxias, de um Haroldo de Campos. Ou, ainda, como no “verso” de Mário Faustino, concentrador de modernidades e pós-modernidades: “Sinto que o presente mês me assassina / Os derradeiros astros nascem tortos”.
Robert Creeley tem um poema que também coopera na configuração do papel da poesia hoje: “Penso que cultivo tensões / como flores / num bosque onde / ninguém vai…”. Aí está o lugar da poesia e do poeta: bosque/mundo “onde ninguém vai”. Tensões. Portanto, há dois movimentos distintos e complementares que levam a poesia para uma situação extrema: o movimento do mundo real, que a expulsa de seu círculo, e o movimento de cada poeta — que, ao “cultivar” tensões, afasta a poesia do lugar comum das coisas deste mundo. Em conclusão. Investir no particular, numa perspectiva universal, mas não investir no “universalizante”. Brasileiro, não nacional. Investir na tradução de contemporâneos (uma forma simples e arriscada de diálogo). Trabalhar com critérios de qualidade e até mesmo reinventá-los. Dialogar com a tradição, mediata ou menos mediata, num horizonte de inovação (inovação, por exemplo, não é cópia de Mário de Andrade em nome da negação de poéticas dos anos 50). Enfrentar estas situações de impotência, morte, violência, obsolecência e inutilidade são alguns dos desafios da liberdade da poesia que queira ter algum significado neste fim de milênio: “All clocks are clouds/parts are greater then the whole”. Ou “Todos os relógios são nuvens / partes são maiores que o todo” — como nas linhas de Michael Palmer.
Régis Bonvicino