Talvez os aniversários de 60 anos da Antropofagia e 60 anos de “Cobra Norato”, de Raul Bopp, possam dar oportunidade para o estabelecimento de relações de semelhança, reificadoras, entre os trabalhos pictóricos de Tarsila do Amaral, dos anos 20 (principalmente em torno do período do movimento Antropofágico) e o poema, escrito em 1921, mas “esquecido” pelo próprio autor e reavivado pela artista e por Oswald de Andrade, só em 1928, data “antropofágica” de sua existência. Embora autorizadas pelos dois (o poema é dedicado a Tarsila), as conexões vêm sendo pouco exploradas, sob um viés ideológico.
Refiro-me sobretudo a telas como “Manacá”, de 1927,” ou a telas como o “O Lago”, “O Touro”, “A Lua”, “O Sono”, “Urutu”, “O Sapo” e “A Cidade”, esta de 1929, e as outras de 1928 (poderia incluir nesta lista “A Negra”, de 1923). Conjunto que se caracteriza, na expressão de Aracy do Amaral, por uma drástica redução de elementos, seguida pela eliminação de variação dramática e abandono da preocupação geometrizante (mas não da geometria). Na verdade, tanto do ponto de vista mítico quanto cultural o poema pode funcionar como uma espécie de “legenda” para os trabalhos de Tarsila ou, mão dupla, as composições podem ser vistas como expansões das palavras, na perspectiva de invenção de uma cultura brasileira, em diálogo com o mundo contemporâneo, “contra todos os importadores de consciência enlatada”, na frase singela do “Manifesto Antropofágico”, escrito por Oswald. E ainda atual — como princípio ativo para a criação das “diferenças” e, no caso, de uma diferença brasileira, num mundo que tende e que se rende, cada vez mais, à homogeneização e à destruição do conteúdo qualitativo das culturas pelo totalitarismo de mercado, no dizer de Robert Kurz.
Um exemplo de semelhança: o sapo é o primeiro personagem a surgir no poema, após a introdução do enredo épico e das cobras. O sapo, no texto, aparece em seguida aos dois versos: “Começa agora a floresta cifrada / A sombra escondeu as árvores”. O cifrado se vincula, aqui, ao escuro, ao incerto, isto é, ao princípios da travessia da floresta por Norato. Como não ver, entre outras coisas, nesta cena o outro sapo, “O Sapo”, de Tarsila, iniciando a passagem de um túnel (espaço anterior e posterior borrados/cifrados pela luz ao fundo e sombra em frente)? Seria também ele o “sapo beiçudo espiando no escuro”?. O sapo era, como se sabe, um dos “vocábulos” escolhidos para a “Subgramática” antropofágica. Tarsila e Bopp (e assim se pode interpretar) não deixam de compartilhar, aqui, com Manuel Bandeira desprezo pelo “o sapo-tanoeiro / parnasiano aguado” (1919). É a ruptura (relativa, mas por que não?) com o “cancioneiro martelado” da época. É a transição a um outro Brasil, digamos, industrial e brasileiro. E aí reside igualmente um dos muitos significados destas peças, telúricas mas distorcidas como num exagero de desenho e de perspectiva “fauvistas”.
Leia-se Tarsila: “Outro movimento, o Antropofágico, resultou de um quadro que, a 11 de janeiro de 1928, pintei para presentear Oswald de Andrade que, diante daquela figura monstruosa de pés colossais, pesadamente apoiados na terra, chamou Raul Bopp para com ele repartir seu espanto. Perante este quadro, a que deram o nome de “Abaporu” — antropófago — resolveram criar um movimento artístico e literário radicado na terra brasileira” (“Tarsila / anos 20”, Galeria de Arte do Sesi, 1997). Já Bopp não só registra, falando de “rãs” e convergências, em seu “Vida e Morte da Antropofagia” (Civilização Brasileira, 1977), a gestação da teoria antropofágica como também suas afinidades com o casal, ao narrar um jantar em São Paulo, em 1928, num restaurante especializado em rãs, no bairro de Santana: “Quando, entre aplausos, chegou o prato com a esperada iguaria, Oswald levantou-se, começou a fazer o elogio da rã (…) — essa mesma rã que estávamos saboreando entre goles de um Chalbi gelado”. Tarsila — prossegue Bopp — interveio: “— com esse argumento, chega-se à conclusão de que estamos sendo agora uns…quase-antropófagos”. Os ovistas holandeses, a teoria dos homúnculos, a palavra tupi abaporu (o homem que come), a “doutrina” fantasiosa da evolução das espécies, para tentar elaborar uma arte brasileira de seu tempo — o que genuinamente nunca havia sido feito antes —, rompendo com as importações parnasianas — cultura oficial à francesa, alienada e de dominação — e para tentar conectá-la — esta nova arte brasileira —, complexidade de contradições, com as renovações do início do século da Europa. Nas palavras de Bopp: “A Antropofagia apontou seus rumos. Debaixo de um Brasil de fisionomia externa, havia um outro Brasil de enlaces profundos, ainda incógnito, por descobrir”. Para ele, este encontro antropofágico com Tarsila e Oswald seria uma espécie de descida às fontes, para captar os tais germens da renovação e para retormar um Brasil subjacente, de “alma embrionária” e para sobretudo fazê-lo encontrar uma “síntese cultural própria”. Ou, de outro ângulo, com Carlos Zílio de “A Querela do Brasil” (Relume Dumará, 1997), se para o europeu o primitivismo representava uma fonte capaz de lhe oferecer elementos diversos dos da tradição greco-romana, para Tarsila e Bopp ele, o primitivismo nativo, representou a adoção de uma “especificidade própria”. Em outros termos, a Antropofagia nasce de uma necessidade de independência e de uma desconfiança (Benedito Nunes). Hoje, por exemplo, pouco detectáveis no cenário cultural brasileiro ou mundial.
A influência de Fernand Léger na obra de Tarsila não se constitui em óbice ou mesmo em contradição para que se possa fixar pontes entre os trabalhos dela (principalmente os já mencionados) e a “Norato” de Bopp, escrito em Belém do Pará em 1921, quando ele estudava direito por lá. O Léger da “era industrial”, da cidade, da fisicalidade das telas, das imagens reconhecíveis mas decompostas em estruturas dinâmicas, não se opõe a “Cobra Norato”. Veja-se: “O céu hoje tá bonito / parece envidraçado” — que, na 17ª edição (1994), todas reescritas e alteradas pelo autor (o que fez do poema um móbile perpétuo), virou abertura do canto 26: “Noite está bonita / parece envidraçada”. Há, no caso, um traço de urbanidade (envidraçado) transposto para a noite da floresta. Todavia, relações menos temáticas e aparentes podem ser feitas em muitos m omentos como “a floresta ventríloqua brinca de cidade”. Léger e Tarsila construíram seus trabalhos de modo a, por assim dizer, “esmagar” a especificidade dos objetos, em contrastes de cor, linha e tom estridente. Não se pode deixar de ver coincidências de estrutura de composição com o poema de Bopp e até em versos como “Um chão de lama rouba a força de meus passos” (apagando a especificidade de chão e de passos, acentuando a fisicalidade das palavras) ou “raízes desdentadas mastigam lodo”, para não arrolar trechos mais óbvios como: “Aqui ‘pe a escola das árvores / Estão estudando geometria” ou “Vento-ventinho assoprou de fazer cócegas nos ramos / Desmanchou escrituras indecifradas”. Esmigalhar/desmanchar “escrituras” indecifradas — Brasil subjecente, formas e conteúdos embionários. Neste horizonte, pode-se “ler” a tela “A Cidade”. OS três personagens-bichos, à maneira de seres humanos, enfiados em botas vermelhas, entre as fachadas de seis edifícios e a faixa de trânsito. O contraste orgânico/geométrico — a precariedade dos passos, não agora com a força subtraída pela lama mas por estranhas impressões provocadas pela cidade. A cidade-ventríloqua brincando de floresta. A cidade projetada pelo inconsciente, onírica — como se fosse, mesmo erguida, subterrânea, esgoto. Ou, nos versos de Bopp: “Nacos de terra caída / vão fixar residência mais adiante / numa geografia em construção / (…) / Derretem-se na correnteza / cidades elásticas em trânsito”. E, ao cabo do poema, para fixar a relação, a chegada do herói Norato a Belém, com a filha da Rainha Luzia, fechando o círculo da similitude.
Assim, também, impossível não imaginar “Manchas de luz abrem buracos nas copas altas” como “legenda” de “A Lua”, com seus cinco vãos de montanhas abruptos e o quarto (minguante ou crescente?) com a cor da luz do sol — o limite entre a consciência (manchas de luz) e sua perda “com árvores prenhas sentadas no escuro”. No caso da tela, uma só árvore, um cactus-homem (rasura dos objetos, novamente). Outra legenda: “Apagam-se as cores Horizontes se afundam / num naufrágio lento”. “Naufrágio evidente dos três planos superiores (que se “afundam” no céu), de três montanhas, uma delas totalmente escurecida e naufrágio, lento, como insinuado na tela, do plano do morro, verde opaco, de onde, diante de um círculo roxo, o homem-cactus observa o pôr-do-sol e o sol, figurado em meia-elipse —posicionada em contrariedade com os círculos que formam os planos de montanhas e morro— dilaceramento, de horizontes.
ANTROPOFAGIA NÓRDICA
Há, por outro lado, forte marca “expressionista” no poema de Bopp, o que poderia sugerir, numa primeira leitura, mais uma contradição entre suas semelhanças e as telas de Tarsila. Mas o “expressionismo’ deve ser entendido como um prolongamento do Romantismo que, para se contrapor ao Iluminismo —inverteu o lema “a ordem acima do indivíduo”, resgatando a energia da natureza e a energia da cor. este renovado Romantismo do final do século 19, nas palavras de Sarah Whitefield (“Conceitos da Arte Moderna”, Jorge Zahar Editor, 1991), “tornou-se a base imediata do expressionismo moderno”, que se constituiu, segundo a ensaísta, numa “tentativa de quebrar a influência da cultura mediterrânea sobre o povo nórdico”. Encontra-se, portanto, na base do “expressionismo”, uma operação antropofágica, de busca de uma identidade subjacente, perdida. Assim, como um Munch, Bopp poderia estar emprestando, com imagens alucinatórias, formas públicas às suas “angústias”: “A noite encalhou com um carregamento de estrelas” ou “O charco desdentado rumina lama”.
Há pontos em comum entre “expressionismo” e “fauvismo”, afinidades, que se traduzem, por exemplo, no gosto pelo exagero do desenho e da perspectiva e pela liberdade de expressão. Exemplo de exagero do desenho e de perspectiva, em Tarsila: o “Abaporu”. Exemplo, em “Norato”: “A selva imensa está com insônia” ou “Longe / atrás de um fio de mato esmagado / estiram-se horizontes”. OU, então: “À beira das canaranas / dormem sáurios encouraçados”. (Canarana quer dizer grama, no jargão antropofágico). Os laços entre “fauvismo” e o “expressionismo” são, dessa forma, assinalados por Norbert Lynton (“Conceitos de arte moderna”, JZE): O movimento ‘fauve’ em Paris, associado a Matisse, Derain e Vlaminck, é —sob muitos aspectos— manifestação afim ao “expressionismo” e teve mais influência sobre os alemães do que eles admitiram. E aí se fecha o círculo com a presença do Léger —artista também vinculado ao “orfismo”, de Appolinaire, que teve seu ensaio “órfico” “Realité et peintre pure” estampado na revista “Der Sturn” —veículo do movimento “expressionista”. Estas afinidades apontam, sem hesitação,para o que se pode designar como um “expressionismo construtivista-antropofágico”, definidor dos trabalhos de Tarsila e de Bopp.
Então, Dresden? 1905? Não. Wilmersdorf, anos 20, como nos adverte Sérgio Buarque de Holanda em seu magnífico ensaio “Bopp e o Dragão”, falando a respeito da trajetória da figura que nomeou como “metropolitana e cosmopolita” (“O Espírito e a Letra”, Cia. das Letras, 1ª edição, 1996): “ele em Wilmersdorf, eu em Charlotenburg, Bopp não parou um só momento aquele mundo a que, na ‘Norato’, deu foz articulada. De repente, entre as luzes multicoloridas de Kurfurstendamm, padecia a invasão do mato de folhas niqueladas. As estrelas punham-se literalmente a despencar em cachos junto “a porta do teatro “Piscator’ e o silêncio fazia ‘tincúun’ no meio da ‘boite’ do ‘Blaue Affe’”.
Cabe relembrar que (à guisa de explicitar o caráter múltiplo e uno da obra —brasileiro e universal) o argumento do poema se condensa num resgate (outra operação no caso antropofágica clara) e numa busca (síntese cultural nova). O herói Cobra Norato enfrenta provas durante sua longa travessia da floresta para resgatar a heroína, “a filha da rainha Luzia”, da cobiça de Cobra Grande ou nos termos de Bopp: “Em umdos casos que me contaram, nas minhas andanças pelo Baixo Amazonas, aparecia, por ocasião da lua cheia, a Cobra Grande, que vinha cobrar o resgate de uma moça virgem. O gênio mau da região, como o Minotauro dos gregos…”. O Minutauro / Cobra Grande remete a “O Touro”, com seu corpo alongado, a sugerir um homem-touro. Chifre em arco, com lado e fundo de troncos pelados e labirínticos. A paixão da rainha Pasífae pelo touro branco, que Poseidon tinha feito sair das ondas do mar. O monstro em volta do qual Dédalo mandou construir o labirinto. O touro como símbolo da idéia de um novo sincretismo, nas matas brasileiras.
Pítia, a cobra: quando morre o homem, a alma deixa o corpo sob a forma de cobra, para se transformar em estrela: “Agora sim / me enfio nessa pele de seda elástica / e saio a correr mundo”. A alma embrionária. Ou, na gramática de Tarsila, alma-cobra que se transmuta no oxímoro “manacá-pênis”. O pênis-manacá ereto, diante das nádegas. Azul e rosa estridentes. A pele de seda das folhas. O ritmo sinuoso das folhas-bocas. E o verde. Ou a vida mental, simbólica, destas formas e planos, para além de si mesmos. Cobra-pênis, que vai ressurgir em “Urutu”, a partir de um ovo “colossal” ou, no dialeto de Bopp: “Entre touceiras de macegas / passa uma suçuarana com sapatos de sede”. O “Urutu”, com seu “esmagamento” da especificidade de seus objetos (ovo entrelaçado à cobra, que está entrelaçada a um cactus) remete igualmente aos “Jacarés em férias / mastigam estrelas que se derretem dentro dágua”.Norato passa por um “ciclo exaustivo de provas” — resgata a heroína. E, mesmo assim, como um repto a cultura brasileira — se exila nas terras do “Sem-fim”, como se o sentido do resgate fosse “seguir agora seu caminho”. Ou então para Sérgio Buarque de Holanda: “O símbolo de Ofis, a Cobra (…) explica-se pela relação entre essas seitas e os velhos mistérios helênicos e orientais, onde a cobra desempenha tamanho papel. Okeanos abraça o mundo como uma cobra imensa. A cobra que morde a própria cauda é expressiva do retorno dos seres, do um que se desmancha no múltiplo e do múltiplo que recobra a unidade”. A cobra mordendo a cauda ou, em Bopp, “Vento correu correu / mordendo a ponta do rabo”. A unidade recobrada e a idéia do eterno retorno podem ser vistas como chave tanto para a interpretação do poema de Bopp quanto para a dos quadros de Tarsila, pois ambos, a partir da multiplicidade de influências e referências, conseguiram articular uma unidade brasileira, de descoberta do subjacente, abraçando o mundo (antropofagia), por meio de uma estratégia clara e ainda eficaz, com conteúdos qualitativos de cultura — paradigmas, mas deixando a questão de seu enfrentando permanentemente em aberto, como eterno retorno ou eterno desafio, inclusive para o tempo presente, de dissolução totalitária de quaisquer diferenças e de extinção iminente da arte como reflexão.
Régis Bonvicino