Marcus Fabiano | 14 out 2016 | Crítica
Desde Baudelaire, o testemunho poético do fragmento urbano integra parte decisiva da melhor literatura Ocidental. Passar, ver, notar, anotar. Procedimentos de registro e aguçamento perceptivo capazes de monumentalizar o minúsculo, disposições estéticas para amplificar o feixe de sensações causado pelo fluxo convulso da paisagem urbana. Comecei a ler a poesia do Régis a partir dessa perspectiva e do contato que tive com a ótima revista por ele editada, a Sibila. A internet foi, portanto, o médium da nossa aproximação.
Em regra, não tenho muita paciência para frequentar eventos literários, mas aquela exposição prometia. O trabalho de Alberto Saraiva, nesse sentido, merece um especial aplauso por sua habilidade em articular um percurso museográfico já começado na parte exterior do Oi Futuro, onde se lia uma projeção noturna sobre a fachada do prédio, intitulada “Frontispício” – poema “Fronstipício”. Fiquei muitos minutos do outro lado da rua tentando formular o que estava acontecendo. Aproximaram-se os rapazes da técnica de projeção para falar comigo: “pode entrar, é de graça”. Respondi que sabia, que estava apenas pensando. Demorei para elaborar: era um gigantesco teleprompter invertido que cruzava os transeuntes, e enquanto o texto subia verticalmente, o fluxo horizontal dos pedestres pelo leito da calçada o interceptava, indo a projeção às vezes parar sobre a superfície fugaz de carros e ônibus. O texto do poema sobre aquele megatelão de cidade era a própria cidade, mais do que projetada, refletida. Entretanto, era São Paulo que se via sobre o pano urbano do Rio. E era um mendigo que se registrava efemeramente sobre as paredes do bairro nobre de Ipanema: um saco preto, autêntico cobertor do lúmpen, compulsoriamente tingia de luz o corpo e a cara dos cidadãos em trânsito.
Logo depois, no corredor de entrada da exposição, lia-se o poema do livro Estado Crítico intitulado Tempus Fugit: o tempo voa. Ele estava exposto em uma longa vitrine, de 12 metros, impresso sobre uma tela do mesmo céu azul de que é feito o firmamento do cabeçalho facebookiano. Nele se leem esses versos: “O face é fake como uma nêspera”, pois “no Face só há amigos”. Não se tratava de mero sarcasmo com o mundo dos simulacros e dos avatares, senão também do testemunho geracional de quem se deparava com um onívoro “arquivo do presente”. Talvez esse poema seja ele o melhor caminho hermenêutico para a Nova Utopia de Régis, além de fisicamente, na própria exposição, ser a única via conducente à galeria.
Assim, desde a urbe se chegava, pelo “face”, a uma instalação com 12 monitores, nos quais jovens diziam trechos do poema A Nova Utopia, tendo ao fundo o fluxo frenético de um dia qualquer no Rio de Janeiro. Composto de sentenças sugestivas e paradoxos derrisórios, alcançou-se um efeito buliçoso e insinuante sobre as misérias do contemporâneo, esse “showroom de exuberâncias naturais” onde “a nova utopia é uma ex-esteticista de unhas postiças”. Na mira de Bonvicino, a crônica de uma interação social dominada pela superficialidade frívola, do que o empastelamento das vanguardas exauridas tornou-se o grande exemplo encarnado em uma “miríade de franquias de poetas premiados”, pois, afinal de contas “a Nova Utopia é um poema à altura de seu tempo”.
Cercado desses monitores jorrando em looping as leituras, no centro da exposição estava também uma caixa acrílica com um belíssimo trabalho plástico, muito bem iluminado, de Luciano Figueiredo. Trata-se de um poema-objeto construído em papel Arches amarelo, com várias dobras pelas quais novamente se liam outros fragmentos do poema título da mostra. Acontece, porém, que Bonvicino nunca foi um poeta concreto. Tampouco reclama-se como herdeiro significativo das altas tradições experimentais da visualidade. Pertencendo à geração cronológica de autores que se engalfinharam pelo espólio dos concretistas de São Paulo, tendo se aproximado inclusive de Haroldo de Campos, Bonvicino elegeu um caminho próprio. E é nesse sentido que compreendo o poema-objeto plantado em meio ao aparato expositivo de sua mostra: ele vertebra um metadiscurso sobre vários suportes integrados no jogo especular da censura oblíqua ao “estado crítico” de uma poesia que se fechou sobre si mesma, sobrevivendo do reprocessamento de sua autorreferencialidade como signo maior de seu próprio impasse. Com efeito, Régis só logrou dizer tudo isso, de modo tão astuto e elegante, com o auxílio valioso de Luciano Figueiredo e Alberto Saraiva, responsáveis por um dos poucos dispositivos multimeios que testemunhei ser capaz de superar a fetichização do pisca-pisca, erigindo, em três momentos, a apurada abordagem do discurso de um dos mais importantes autores da atual poesia brasileira.
MARCUS FABIANO GONÇALVES (1973) é gaúcho e mora no Rio de Janeiro, onde é professor de Hermenêutica e Filosofia do Direito na Universidade Federal Fluminense. Em 2012 saiu o seu segundo livro de poemas, Arame Falado, pela editora 7Letras. O autor também publica ensaios e inéditos no seu blog: https://marcusfabiano.wordpress.com/