Imagem: Kartick Chandra Pyne
Por RODRIGO SUZUKI CINTRA*
Comentário sobre o livro de poemas de Régis Bonvicino
Uma poética-violência percorre a estrutura do novo livro de poemas de Régis Bonvicino: A nova utopia. Os tempos exigem. É na denúncia e crítica social da mediocridade de nossa época, um momento em que o coro de um politicamente correto surge nos discursos prontos de maneira cínica, que a violência se propõe. As imagens e temas do livro são, sim, duras, às vezes brutais. E bem se pode perceber que Régis Bonvicino faz poemas como quem anda armado contra o mundo, e sua metralhadora é a linguagem.
Com estruturas formais desconcertantes, e experimentalismo próprio de poeta que sabe o que faz, Régis Bonvicino reverbera “o lado útil da palavra” (A nova utopia 2) quando nas imagens forjadas nos poemas, a linguagem dobra sobre si mesma e provoca sensações de estranheza no leitor. O poeta é um radical da forma e um crítico agudo da sociedade. A nova utopia“é um livro de poemas que se propõe esteticamente e politicamente. E o engasgo na sua leitura vem tanto porque reconhecemos a corrupção própria aos tempos como também porque temos dificuldade em transitar pelos poemas tranquilamente, sem os assombros que Régis Bonvicino registra na língua. Um livro difícil pela proposta e pelo estilo.
A palavra “utopia” foi inventada por Thomas More e tinha o sentido inicial de descrever uma sociedade em que tudo funcionava de maneira perfeita. Um lugar em que os indivíduos eram felizes e haveria completa harmonia social. Com o passar do tempo, a palavra começou a ser utilizada para designar pensamentos fantasiosos, ideias impossíveis de serem implementadas, um ideal absolutamente inalcançável. O século XX, principalmente por meio da literatura, cunhou, também, uma palavra para designar futuros caóticos para a sociedade: distopia. 1984, de George Orwell, Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, Laranja Mecânica, de Anthony Burgess, Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley são exemplos de romances que projetam um futuro extremamente desalentador para a sociedade.
O título do livro de Régis Bonvicino, A nova utopia, já é, em si, uma construção sofisticada, pois é, ao mesmo tempo, poético e político. De um lado, nos leva a crer que apenas mais uma crença apareceu, mais uma quimera de ideias se produziu, entre as tantas idealizações que os indivíduos formulam. Segundo essa interpretação, o poeta, apesar de combativo, está descrente.
De outro lado, pode se pensar, também, que existe alguma esperança, alguma novidade no cenário social. Pois, a própria qualidade dos poemas do livro indica que a poesia pode ser uma chance. Quando o poeta, então, afirma que “A poesia está morta. / Mais do que morta. / A nova utopia não quer saber da lei das estrelas e da fórmula da flor” (A nova utopia 6), talvez consiga nos dar um alento, mesmo que às avessas, justamente pela força e valor de seus poemas, de que ainda existiria espaço para a poesia. Se “o que está no poema não está no mundo” (Janeiro), uma redenção revolucionária, utopia de sempre, somente se dará via poesia.
Régis Bonvicino opera uma disfunção temporal e conceitual, ao longo dos poemas do livro, entre os termos utopia e distopia. Ambas as palavras, em seu uso cotidiano, apontam para a ideia de futuro. Ocorre que para o poeta, o futuro está prontamente situado no presente. Tudo se passa como se nós já vivêssemos a distopia. É o agora que é distópico e a nova utopia, mera imaginação, também faz parte da construção desse cenário, “é um relógio sobre uma lápide” (Arte).
A nova utopia não é tematizada, em sua proposta de obra, pelas imagens de flores, luz, luar, sol, ou algo parecido. É no espaço da cidade, tema recorrente na poética do autor, que encontramos, qual descrição precisa de um cenário, a imagem de mendigos dormindo na rua, lixo acumulado, capitalismo selvagem nas ruas, prostituição de ideias, cinismo político. Se esta proposta artística se afirma politicamente e poeticamente, é no cuidado obsessivo com a disposição das palavras no verso, nos cortes abruptos das imagens que cria, na insolência em provocar um sentido estético no leitor desavisado (que também tem que se armar para adentrar esse universo de letras particular), que o ritmo do livro arqui-provocativo se propõe.
Se o poema Uivo, de Allen Ginsberg, se transformou em um dos livros mais importantes da história, hino da beat generation, talvez fosse pela violência das propostas poéticas e vontade de liberdade que um uivo conclamava para assombrar a sociedade americana da década de 1950. Em A nova utopia, de Régis Bonvicino, também ouvimos nitidamente esse som, “outro, órfão de um noia / uiva na esquina” (Luz), na tentativa de enfrentar esteticamente uma sociedade cínica e injusta. Como em um violento uivo, que nesse caso também é político, o autor registra sua indignação com a sociedade e A nova utopia ainda será lido como o livro que mais representou nossos tempos.
*Rodrigo Suzuki Cintra é professor titular da Faculdade de Direito da Universidade Paulista (Unip).
Referência
Régis Bonvicino. A nova utopia. São Paulo, Quatro Cantos, 2022, 160 págs.