TORQUATO NETO: CONVERSA ENTRE DÉCIO PIGNATARI E RÉGIS BONVICINO
Como você situaria Torquato? Um poeta letrista ou um poeta que fazia poesia escrita?
Torquato era um criador-representante da nova sensibilidade dos não-especializados. Um poeta da palavra escrita que se converteu à palavra falada, não só à palavra falada idioletal brasileira, mas a palavra falada internacional. A palavra falada do Português do Brasil – e não o brasileirês, fosse piauiense, baiano, carioca ou paulista. Não era de folclorizar a língua. Nisto seguia João Gilberto mais de perto do que os seus companheiros baianos. Era mais de ideologia do que de magia.
O trabalho de Torquato representa, a meu ver, a projeção de certos modos de operar da arte construtivista, como a montagem, numa sensibilidade pop. Você concorda com isto?
Talvez que o pop-construtivismo seja insuficiente para caracterizar o traço distintivo de Torquato, já que poderia ser aplicado a outros, na música e fora dela. Mas, se aceitarmos a idéia, que me parece interessante, ele estaria mais para Antonio Dias do que para Hélio Oiticica. Torquato não confundia Oswald de Andrade com Zé Celso. Outros podiam esconder a cabeça, ter receio de parecer high brow. Não Torquato. Seu repertório cultural era mais amplo, seus roteiros mais seguros. A expressão geléia geral, que criei e empreguei em 1963, numa discussão com Cassiano Ricardo, ao expulsá-lo da revista Invenção, transformou-se num miniprograma crítico-criativo para Torquato, que não só a utilizou na letra famosa dos templos da Tropicália, como com ela batizou a coluna que manteve na Última Hora, do Rio de Janeiro. Seu modo de proceder na montagem/colagem/bricolagem tinha uma certa orientação, não era errático.
Você afirmou, num de seus últimos artigos, que Oswald de Andrade foi o elemento radicalizador do processo de renovacão empreendido pelos nossos modernistas. Este mesmo raciocínio poderia ser transposto para Torquato em relação ao Tropicalismo?
Não sendo cantor ou compositor é provável que se sentisse atraído para uma visão cultural mais ampla, uma vez que seu engajamento crítico-criativo não podia compromissar-se com a necessidade de manter a “solidariedade baiana” do movimento. Embora reconheça nele uma vocação para o radical, não acho que tenha representado a função oswaldiana a que você se refere. Se houve tal ponta-de-lança radical, ela foi antes representada por Rogério Duprat. Quem ouve música e não apenas letra pode constatar isso. Em complexidade e qualidade, não há nada semelhantes aos arranjos de Duprat na MPB. Prefiro dizer que Torquato foi o Mário Faustino do tropicalismo, o Mário tragicamente morto dez anos antes. Ambos, morto vocacionais.
Qual a importância de Torquato como articulista, polemista, e ator, para o surgimento de um novo cinema (Rogério Sganzerla, Júlio Bressane) em oposição ao “cinema novo”?
Separado dos baianos, migrou para outros códigos. De sua coluna, na Última Hora carioca, infezmente de curta duração, abriu fogo contra o cinema novo, que já estava se academizando nos cargos e verbas oficiais. E apoiou a marginalidade dos experimentalistas (e isto poderá ter-lhe custado a coluna), como Sganzerla, Bressane, Ivan Cardoso, Luis Otavio Pimentel que representavam o lado urbano universalista do cinema brasileiro. Como ator, foi Nosferatu vampirizando baianos, no super-8 do Ivanzinho. Como editor, estava montando, junto com Waly Salomão, a Navilouca, que Caetano viria a co-patrocinar depois, como homenagem póstuma. Com sua morte prematura, completou o retrato falado de um cult artist.
Você me contou, em conversa, que esteve com Torquato na véspera do suicídio. Fale um pouco sobre isso.
Poucos contatos tivemos no início. Calado, recolhido, tímido. A diáspora dos Beatles. A desastrada, senão desastrosa viagem a Londres, o rompimento com os baianos no duro exílio, onde também os visitei, em 70. As mortes de Jimi Hendrix e Janis Joplin. Foi nos últimos dois anos que tivemos ligação um pouco mais estreita, eu lecionando na ESDI, ponte aérea. Naquela noite, a de seu aniversário, tínhamos assistido a um filme cinemascópico do Sganzerla (de que não gostei, dizendo que me lembrava A Queda do Império Romano…). Por alguma razão careta, eu estava de saco cheio e não quis ir à festa. Combinei com Luiz Otávio para ver, no dia seguinte, às dez da manhã, no Cine Zero Hora, da Avenida Rio Branco, o seu curta sobre Oswald. Era um sábado, acho. Disse-me que deixara Torquato em casa de Ana, às 3 da madrugada. Vi o filme e me mandei rapidinho para o Aeroporto Santos Dumont. Em São Paulo, mais do que depressa, fugi para o meu estúdio, recém-inaugurado, a 30 km de distância. Era novembro, eu estava ultimando a minha tese de doutoramento, Semiótica e Literatura, juntamente com uma tese subsidiária sobre cinema, onde pela primeira vez se levava a sério a obra deles no âmbito universitário. Voltei para casa no domingo à noite, quando li, estupefato, na seção de arte de um jornal paulistano, a manchetinha: Enterrado Torquato Neto.
Régis Bonvicino (1982)