Um Barco Remenda o Mar – entrevista de Régis Bonvicino à Márcio Renato dos Santos (Gazeta do Povo – PR)
1. Como foi o processo de escolha para os autores presentes no livro Um barco remenda o mar: dez poetas chineses (coletânea bilíngue organizada pelo senhor e por Yao Feng? (como foi a escolha, como aconteceu a tradução, enfim, dados gerais).
RÉGIS BONVICINO: Conheci, por e-mail, Yao Feng, um poeta extraordinário, em 1999. Há trabalhos dele em , site da revista Sibila. Ele é o único poeta chinês que aprendeu português – tem um português fluente. Tornamo-nos pen friends – amigos à distância –, ele em Macau e eu em São Paulo. Em 2006, ele veio ao Brasil para participar do seminário “Poesia em tempo de guerra e banalidade”, organizado pelo Alcir Pécora e por mim, para o Espaço Cultural CPFL, de Campinas. Combinamos fazer uma antologia nesse momento. Em seguida, ele começou a enviar o material. O critério foi o de publicar apenas o que funcionasse em português, um português de João Cabral, de Carlos Drummond de Andrade, de Murilo Mendes e não o de fazermos traduções “ideogramizantes”. O chinês não pode ser vertido literalmente, pois, transforma-se em “poema concreto” e, deste modo, perde-se o conceito mesmo de tradução e o sentido da outra língua e do próprio chinês. O Yao fazia as versões literais, que eu retrabalhava à exaustão, e, depois, ele as relia – aprovava ou não. Por isso, há dez poetas somente, com poucos poemas. Aliás, produto de um ano ou mais de trabalho. Alguns poemas traduzi do inglês e submeti a ele, que fez as revisões. A palavra final foi sempre dele. Um barco remenda o mar foi o livro que me deu mais prazer de traduzir, entre todos os que traduzi. E o que mais gostei de escrever, ao lado do meu mais recente livro de poemas, o Página órfã (Martins Fontes, 2007).
2. O que os poetas da China, sobre os presentes na antologia, dizem? Quais os temas, em comum até, que eles apresentam?
RB: Subjaz a todos os poemas a tradição milenar da cultura chinesa, combinada com a apropriação do presente, do contemporâneo. Os chineses têm uma ingenuidade franca e dura, uma integridade que os ocidentais não têm. Bei Dao é um dos melhores poetas vivos do mundo. Ele foi perseguido por Deng Xiaoping e se exilou depois dos episódios de protesto da Praça Celestial, de 1989. Permitiu-se o seu retorno agora em 2006. Ele reside em Hong Kong. Os chineses são ao mesmo tempo enigmáticos e concretos. Considero a poesia brasileira contemporânea muito provinciana, autofágica, queimando o capital de sua tradição. Os chineses são – apesar do PC e da censura – bem mais cosmopolitas e inovadores do que nós. Saudades de Paulo Leminski!
3. Há quem diga que há duas possibilidades de atuação literária na China. Os que vivem na China e os chineses exilados. Concorda com isso? Por quê?
RB: Um poeta é um exilado por definição. Prefiro considerar-me um exilado poético no Brasil. Cada país produz um tipo de censura. Na China ela é política. No Brasil, é econômica. A Companhia das Letras, por exemplo, tem o pior catálogo de poesia e – em muitos aspectos – de prosa brasileira do Brasil e, no entanto, seus autores recebem Jabutis, Portugais, vão às Flips etc. São resenhados em todos os veículos. Não tenho dúvida que autores da Companhia das Letras serão “premiados” em 2009, aliás, já estão “premiados”. É o clube dos amigos da mediocridade e do marketing, com o efeito deletério de dissipar a própria arte do país. No Brasil de hoje, é proibido falar em inovação, em invenção. É proibido criticar, embora os jornais tenham listas negras de autores e persigam vários. Há aqui um macartismo. Vivemos ainda, em termos editoriais, a euforia do início dos ano 1990 e não entramos no século XXI. Aqui não há crítica literária, que é a análise do livro. Há resenhas encomiásticas, marketing. Críticos despreparados como Beatriz Resende. Fiquei horrorizado ao ver Paulo Coelho posando de perseguido político (mesmo que tenha sido) e fazendo campanha chapa branca pelos direitos humanos no aniversário dos sessenta anos da Declaração. Aqui, diversidade é pretexto para a flacidez, o baixo nível. Não sei se as tensões chinesas são piores do que as nossas – são distintas. Para cada Josely Vianna Baptista – para citar uma autora paranaense – surgem milhares de “poetas” desnecessários.
4. Qual a sua opinião sobre a China? Revolução cultural, liberdade de expressão, vida privada?
RB: Sou democrático (socialista democrático) e por isso rejeito o regime chinês. Rejeito Mao e sua revolução cultural, que liquidou parte do patrimônio histórico da China. Os talebãs explodiram budas, Mao fez o mesmo. Como aceitar um governo incentivar que um trabalhador receba US$1 por dia? Como aceitar as prisões e os campos de concentração? Como aceitar os fuzilamentos? No entanto, há milhares de trabalhadores escravos no Brasil. As favelas são campos de concentração também. Há tortura nas delegacias de polícia brasileiras. Como aceitar a “democracia” de George Bush? Ou o regime dos Castro? Há muito o que se fazer pela democracia no mundo – ela precisa se tornar social, equitativa. Há uma construção aí, a ser empreendida. Hoje, é meramente aritmética – de maioria temporária.
5. O que achou das Olimpíadas da China neste ano? O que ela representou para o imaginário ocidental, mundial, além China?
RB: Ante a derrocada norte-americana, as Olimpíadas mostraram (e mesmo sem a derrocada) que a China é uma superpotência econômica, embora exatamente no momento em que a “utopia do mercado” se esvai numa depressão. Mostraram, no entanto, que o mundo unipolar do pós Guerra Fria cedeu espaço a um mundo multipolar, onde a China é protagonista. Mas, a China tem problemas enormes. Entre as cidades que mais poluem no mundo, estão vinte metrópoles chinesas. É uma potência econômica, mas não um exemplo, um paradigma. É necessário que as matrizes industriais sejam alteradas para verdes. A China é movida a carvão, cópia (contrafação) de produtos – o contrário do que deve fazer, embora o faça, a arte. E a mendigos!