Para falar daquele que propriamente é objeto deste comentário – “Me transformo ou o Filho de Sêmele”, de Régis Bonvicino, espécie de poema-protesto contra a intervenção das tropas das Nações Unidas no conflito dos Balcãs — , achei interessante partir da leitura de dois artigos que, com diferentes visões e sem abordá—las em conjunto, tratam de realidades que, apesar de parecer inconciliáveis, ou talvez por causa disso, muitas vezes já andaram juntas: a poesia e a guerra.
No primeiro desses trabalhos, bem a propósito intitulado “A função da poesia”, o próprio Bonvicino lembra que, neste fim de milênio, a prática poética continua a ter a mesma serventia de sempre — isto é, a de ser uma manifestação inútil. Retoma, assim, algo presente, de modo mais ou menos explícito, em várias teorias estéticas da modernidade e que, aqui mesmo no Brasil, Paulo Leminski — que é citado no artigo — chegou a revestir com as cores da divertida e, ao mesmo tempo séria, “teoria do inutensílio”. O artigo, sugere que tal inutilidade parece exacerbada num tempo como o nosso, em que a prática poética perdeu funções que já teve em outras culturas e em que nem mesmo pode contribuir, nas palavras do autor, para “estimular uma língua”. Como diz o poeta, nos tempos de hoje, de algum modo, a poesia se assemelha, cada vez mais, à imagem de um pássaro assassinado por um gato num quadro de Picasso de 1939 (ano que, talvez por acaso, pode ser bastante significativo aqui, se lembrarmos que ele marca o início da Segunda Guerra Mundial). “O gato, com um olho exaltado e outro de vidro, morde as penas da asa do pássaro. Pássaro sem vôo, rasgado pelos dentes do felino. Gato desestetizado, assassinando um pássaro preto.”
Essa imagem, destinada a dar voz à situação de inutilidade e de obsolescência que cercam o poético, pode fazer aflorar, quando traz a morte e a fraqueza à cena, um outro problema, que corre paralelo àquele que se aborda mais explicitamente. Pois a poesia não é um fato apenas estético (e aqui cabe pensar, talvez, no “gato desestetizado”, que aponta para o fim, pelo menos, de uma certa estética). Enche—se também, como qualquer ato do homem, de ressonâncias éticas que não podem ser afastadas com um simples gesto de mão ou com o silêncio a respeito de determinadas questões — ressonâncias que, como a dor num membro perdido ou os fantasmas de um castelo nunca habitado, são capazes de assombrar, na verdade, qualquer silêncio. Torna—se pertinente indagar, assim, se a inutilidade — isto é, o fato de não ter finalidade prática — que, nas palavras de Bonvicino, não permite à poesia “qualquer encargo ou serviço”, pode livrá—la realmente de ter sempre um peso sobre os ombros, ou transformá—la num mero ato gratuito num sentido gideano. Essa é uma dúvida que mergulha nas águas escuras e difíceis da ética, cujo desafio principal, em certa medida, é justamente o dessa relação com a morte, que nos espreita entre as tintas do quadro de Picasso. Todavia, como lembra Bonvicino: “A existência irreal da poesia (…) propõe a ela — poesia — que se defronte com questões que ninguém mais, nem mesmo a filosofia, quer se defrontar: o insucesso, a obsolescência, a violência, a morte, a impotência, o isolamento — uma ordem outra de seres. Tanto melhor, será a poesia que se dispuser a responder estas questões”.
Pode—se observar, quase marginalmente, que há uma estranha aproximação entre a inutilidade da poesia e a morte. Pois a poesia é inútil justamente porque não preenche ou exerce diretamente nenhuma função destinada à sobrevivência do homem. A poesia, para usar uma expressão de David E. Welbery, é um “potencial antropológico excedente”, é sobra, sobrecarga, hybris. E, nesse sentido, num dos muitos paradoxos que a movimentam, também é vida, pois viver não deixa de ser uma forma de exceder, de abrir—se para o outro e a partir do outro, de extrapolar a quietude de um mundo que se encerrasse no fechamento em si mesmos dos objetos inanimados
. O outro artigo a que me referi, o pequeno mas denso “Pensar a Guerra”, de Umberto Eco, também fala sobre uma forma de inutilidade. Tomo—o aqui mais como um trampolim para desenvolver meu próprio argumento do que como uma teoria a ser usada na análise de meu objeto. De acordo com o semioticista italiano, a guerra — essa outra manifestação de hybris — é hoje realmente algo inútil ou impossível logicamente, num mundo em que a ameaça de armas nucleares faz do planeta um constante prisioneiro, em que não é possível solidez ideológica de toda uma sociedade, em que o fluxo de informação, a despeito dos governos, faz vacilar a fé dos cidadãos e em que o poder é difuso e parcelado. Além dessa análise, localizada historicamente e passível de contestação em vários pontos, o artigo lembra que a guerra está sempre em contradição com as próprias razões que a motivam, de tal modo que só aquilo que Eco chama de preconceito hegeliano — a idéia de que a história tem um sentido — pode conduzir à ilusão de que “as guerras clássicas produziram resultados razoáveis…” (p. 24). É possível pensar que, no atual momento histórico, em que o capitalismo parece precisar como nunca da expansão dos mercados e de uma estabilidade que lhe permita estender a sua teia de maneira mais eficaz, essa incapacidade da guerra de dar conta de seus próprios fins torna—se, um tanto paradoxalmente, ainda mais contundente, e a sua inutilidade, mais flagrante — num movimento, eu diria, que não deixa de ser estranhamente semelhante, embora por outras razões, ao da poesia.
Contudo, ainda que Eco não o mencione, se deixarmos de lado tanto essa inaptidão da guerra para produzir os resultados visíveis mais esperados, quanto o problema histórico de sua atual falta de razoabilidade econômica, cumpre observar que, no limite, existe nela, ainda, uma outra inutilidade intrínseca, que é justamente a que me interessa aqui. Pois, na origem de qualquer ato belicoso de fundo claramente ideológico, está sempre um embate entre doxas, entre opiniões diferentes, que se enfrentam confiantes na própria força ou numa espécie de julgamento divino, para que se afirme a dominância de uma sobre a outra. A simples subjugação do oponente, neste caso, não pode fazer com que alguém triunfe realmente, pois sempre restará no outro a própria doxa prestes a materializar—se num ato de revolta ou em formas variadas de sublimação. Uma opinião vencida com armas diferentes da retórica é silenciada, manietada, mas nunca subjugada inteiramente. Isto é, a vitória é sempre aparente, provisória e depende não da suposta verdade de uma causa, mas de uma força externa. A esperança de eliminar ou converter completamente o adversário, impossibilidades práticas (que guerra o conseguiu?), por outro lado, desemboca numa aporia: a doxa, por definição, é algo que aparece e, portanto, necessita logicamente do outro. A ideologia só pode existir contra alguma coisa. O eu só pode existir em face do que está fora dele.
Porém, ao contrário do que acontece na poesia, que pode bradar a própria inutilidade como uma virtude, o que a guerra tem de inútil deve ser escondido. A guerra precisa de se sustentar sobre a esperança do triunfo, mesmo que apenas o triunfo “moral”, essa forma de vitória dos vencidos. Afinal, como sustentar o sacrifício que ela exige, se nela não houver a ilusão de serventia?
É interessante confrontar essas duas inutilidades tão diferentes — a guerra e a poesia — no fim de um século que, a partir de uma contradição inerente à própria modernidade, como o mostrou Habermas, soube transformar a guerra em algo com proporções que se podem chamar de industriais, seja pela produção em escala do morticínio seja pela organização racional das ações de combate, geralmente desencadeadas sob a máscara de um razão “prática”, mesmo quando tingida de humanitarismo (é preciso limpar a sociedade dos judeus; é preciso livrar o Kuwait de Sadam; é preciso libertar os pobres croatas do tacão sérvio). Um século em que, ao mesmo tempo, mais do que nunca, a poesia pareceu render—se à vertigem ou ao peso de sua inutilidade. Estamos, nesse caso, diante de um combate em que essa mesma poesia não pode defender, no fundo, qualquer bandeira a não ser a sua própria — um combate permeado por sons e imagens difíceis, em que a impotência, quase sempre, é o principal resultado audível. Confronto em que a guerra deve surgir como ela efetivamente é: uma excrescência, algo desumano não só por afrontar o humano e por colocar a nu, de modo negativo, os limites da humanidade, mas também por esconder sob os mantos da falsa razão e da ideologia a necessidade do diferente e a inutilidade de se lutar contra ele. Confronto, porém, de que a própria poesia, em certo sentido, também não pode sair ilesa — ela, afinal, não serve para abater ou convencer ninguém, principalmente num mundo em que, cada vez mais, bem poucos lhe prestam atenção.
Umberto Eco fala de uma “função intelectual”, constitucionalmente infensa à guerra, que “consiste em distinguir criticamente aquilo que se considera uma aproximação satisfatória do próprio conceito de verdade” e que pode escavar “as ambigüidades para trazê—las à luz”, enquanto a guerra “demanda que sejam eliminadas as nuanças e ambigüidades”. Ao exercer a função intelectual, qualquer indivíduo não pode ser contra ou a favor de um dos lados envolvidos na luta, em nome da justiça ou da razão; deve ser contra o próprio conflito. Ela é exercício do logos, mas podemos pensar também numa “função poética”, manifestação do que a palavra tem de mythos e capaz, justamente, de encenar tudo que há de ambíguo, desenhando—o em sua própria carne. Função capaz de mostrar — não propriamente de refletir sobre — as contradições da guerra, mas apenas para aqueles que tenham os olhos abertos para vê—la. Todavia, como o homem que pode ler o poema não é o mesmo que dispara o canhão, mesmo que ocupem o mesmo corpo — pois o primeiro deve participar da ambigüidade e o segundo deve fechar os olhos para ela —, a poesia é impotente para vencer a guerra.
Importa observar que, no duelo entre essas duas realidades inúteis mas dolorosas de que venho falando, o que há também é embate de doxas. Se, no caso da guerra, estamos, porém, no terreno de um endoxal que não pode sair de seus limites — da ideologia pura e simples, de duas opiniões que se opõem sustentadas na própria ânsia de um fechamento que não quer dar lugar ao outro —, a poesia, por sua vez, como bem o disse Barthes quando falou da escritura, deve desmontar a doxa — e o faz, principalmente, por meio e através do paradoxo. Isso não quer dizer, todavia, que ela mesma não seja doxa, como toda literatura e toda arte. O termo grego, afinal, é ambivalente: no primeiro caso, semanticamente estamos mais próximos do uso que lhe deu Platão, de falsa aparência, de opinião enganadora e/ou enganada; no segundo, daquele que a faz sinônimo da “bela aparência”, do “esplendor”, no sentido que os estudos bíblicos lhe reservam quando tratam da glória divina. Aparência que só é “bela”, contudo, porque desconfia de si mesma e pode se desconstruir no mesmo movimento em que se constitui, abrindo o que era fechado. E esse é o peso que a poesia, em sua inutilidade, pode ter: denunciar a falsa transparência que há nos motivos da guerra, apesar e por causa de uma opacidade, de um resíduo de obscuridade que sempre deve restar nela — a poesia. Uma opacidade sem vergonha, capaz de transformar verbos desgastados, falsas verdades e até o silêncio em forças prenhes de sentido, numa espécie de epifania profana, de demiurgia que se opõe visceralmente, fundamentalmente, ao que há de destrutivo na guerra. Não lhe importa que poucos possam jogar esse jogo: não lhe interessa propriamente vencer, mas testemunhar, resistir, numa forma, talvez, de reconhecer que, afinal, há sempre um peso a carregar.
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A renga “Me transformo ou O filho de Sêmele” é um momento especial desse confronto. Coleção de vozes que se cruzam e se transformam, apareceu inicialmente como um dos poemas do livro Ossos de Borboleta, e, na sua atual manifestação como obra independente, como que ilustra um dos temas que ressoam, fantasmaticamente, em seus versos. Contemplar a passagem de uma forma para outra é refletir sobre a própria natureza da poesia e sobre o modo como ela, numa prática sem finalidade prática, pode—se opor intrinsecamente, basicamente àquela incompreensão, àquele fechamento que move a guerra.
O poema original tinha um título mais curto — apenas “Me transformo”. Inserido num conjunto maior que tirou o nome de uma de suas passagens — o livro Ossos de Borboleta — nessa primeira aparição, mantém com todas as vozes que o cercam um diálogo em que o tempo e o espaço surgem como realidades a ser continuamente inventadas, num fluxo difícil que carrega a condenação ou o prêmio de ser sempre novo, apesar (ou talvez por causa) de uma espécie de princípio de estabilidade que habita nem que seja como sonho ou lembrança os objetos do mundo, mesmo que eles próprios estejam inelutavelmente lançados no turbilhão de metamorfoses. Nos poemas dessa obra de que sairia o futuro “Filho de Sêmele”, tomadas por uma estranha circularidade feita de movimento, que muitas vezes parece almejar e às vezes temer o repouso, para sempre negá—lo na prática, as imagens de coisas estáveis dão sempre lugar a elementos ativos, flashs de agitação e de mudança, ou vice—versa, desenhando signos que, como a borboleta do título, esvoaçam entre a antítese e o oxímoro: “Como num lago de águas paradas… /como estes dedos de pedra…/algo se passa/além do lago (“Como num’); “Cai uma chuva fina/ e o universo/quieto/ lá em cima” (“290395”); “Som de rádio/passa/(…)/Ruído rasga/ Portas que/se fecham/ Só/ e o silêncio/ motores…”(“Março”); “Diante das três/cabeças de pedra, a certeza/ que nunca mais estarei/ aqui. A água jorra…”(“Diante”). Na imagem da borboleta, ser coruscante dos dias de sol, animal provisório de muitas passagens, o movimento e a transformação; nos ossos, o empalhamento, a taxidermia, que surge como negação do que se anunciara antes, numa imagem monstruosa; no intervalo entre um e outro, algo novo e instável, com a abertura da interrogação e o júbilo da ambigüidade e da contradição.
Em Ossos de borboleta e particularmente em “Me transformo”, o poeta se posta (e aqui o verbo pode ser entendido como “se coloca” ou “se envia”) diante do mundo e para o mundo, num assujeitamento feito de indas e vindas, em que a metáfora da janela já o denuncia como algo colocado no limite entre um “dentro” e um “fora” que precisariam de ser reafirmados ou negados — e a opção, no caso, parece—me clara. “Me transformo, / outra janela —/outro/que se afasta e não se reaproxima…” Nas imagens da transformação e da janela — que por ser “outra” já se põe ao lado de uma anterior ou concomitante — os pares “eu e outro” , “mesmo e outro”, como elementos mutáveis e dialógicos, já se anunciam como cruciais para o poema. Esse outro que se afasta, entretanto, como poderia se reaproximar, se supormos que tudo muda, que tudo é outro? Em seguida, um quase paradoxo: “nas desobjetivações e reativações,/nas linhas e realinhamentos/outros/me atravessam…” “Objetivar” é um termo que tem um peso específico, na medida em que, para a filosofia, se refere à transformação do subjetivo em objetivo. Segundo um movimento inverso ao que essa palavra comunica, denunciado pelo prefixo “des”, o poema faz com que o mundo venha até o poeta e não o contrário, atravessando—o. Esse jogo não é algo estático, mas uma colocação em atividade, mais que isso: uma “reativação”, palavra em que um outro prefixo aponta para a volta de algo que já acontecera ou vinha acontecendo, num fluxo contínuo de desconstrução e reordenação que é reafirmado pelos “realinhamentos” que atravessam o eu poético. No movimento, as coisas perdem sentido, mas certamente — o poema pode prová—lo — apenas para ganhar outros, como acontece com a própria expressão “ossos de borboleta”, que esvoaça na página apesar de (e contra) qualquer taxidermia. A transformação do eu que fala se dá, nessa primeira parte do poema, de modo quase oriental, na simples observação de uma pétala, essa coisa efêmera e simples, como que a (re)afirmar uma identidade possível apenas na alteridade mutante do mundo. “Morto de ser” e até a expressão “me destransformo” que surge mais à frente (pois qualquer “destranformação” é também “transformação”) são outras figuras que concorrem para construir o oxímoro maior que é o próprio poema, complexo cantante de afirmação e negação, que na sua segunda parte faz um percurso inverso ao da primeira (e o poema só pode existir no intervalo entre ambas), numa trajetória em que o próprio deslizamento dos prefixos parece falar não só de transformação, mas da chegada de algo que vem de fora para imprimir novos sentidos às coisas. Na “mesma janela”, na segunda parte, o outro é captado, numa alteridade que não se nega, não se afasta, enquanto a “desobjetivação” agora é “objetivação”, e as linhas que atravessam o poema, traçadas pela igualdade, são inexistentes — e, no caso, só poderiam sê—lo, pois como conceber o verdadeiramente igual no contexto geral dessa obra cambiante? O prefixo “re”, que antes modificava “ativações”, migra para o verbo “repassam”, na sugestão de algo que volta, ao passo que o retrato do poeta, esse “taxidermista de si mesmo” se apresenta, nesse novo momento, como “desativado”, prolongando o jogo de antíteses. A segunda parte termina, portanto, com a imagem de algo estático, lembrando a borboleta morta, em confronto com a primeira, que findara falando de transformação. Entretanto, o fato de o poema encerrar—se desse modo, parece—me, não pode ser lido como triunfo da mesmice e de uma situação estável; o seu sentido pode ser buscado apenas num intervalo obscuro entre a primeira e a segunda partes, espaço resistente de opacidade que se recusa a cristalizar—se num significado claro, alavanca que projeta um peso de ambigüidade e não definição sobre todos os versos, equilibrados entre o excesso e a falta.
Esse poema em que a alteridade e as metamorfoses são elementos essenciais, na perspectiva de um eu singular que se encontra com o mundo, ganha novas vibrações ao se projetar numa outra figura, a do “Filho de Sêmele”, obra coletiva que encena um problema coletivo. O poema de Bonvicino é transpassado, nessa nova versão, por outras vozes que lhe abrem novos caminhos. As estrofes originais, terreno de um cruzamento entre o mesmo e o outro, o eu e o mundo, são agora literalmente atravessadas pela diferença. As linhas de “Me transformo”, cortadas pelo (des)encontro de várias línguas correspondem a realinhamentos, transformações várias que, projetando numa outra dimensão o que já era matéria e forma do poema, desconstroem os seus potenciais sentidos para dar lugar a outros.
O português de Régis Bonvicino coloca—se lado a lado ao francês de Inês Oseki—Depre, ao inglês de Charles Perrone, ao estranho mas belíssimo inglês homofônico de Charles Bernstein, ao tcheco de Odile Cisneros e Tomás Samek, ao servo—croata de Gorica Majstorovic, ao italiano de Livia Apa e ao espanhol de (novamente) Odile Cisneros. Nessa enumeração exaustiva de nomes e de línguas nem sempre correspondentes, evidencia—se um espaço dialógico de múltiplas interações que, de certa maneira, já se anunciam num Bovicino que escreve em português e se prolonga na instauração de uma estranha assembléia de diferenças, de uma guerra pelo avesso, de uma babel irradiante, de um campo de reverberações em que as ambigüidades do poema original se ampliam.
Muito já se falou da difícil arte da tradução, que pode ser compreendida de muitas formas. Por exemplo como a tentativa de levar de uma língua para outra o conteúdo de uma mensagem — como se fosse possível separar significante de significado, signo de referência. Ou, por outro lado, como reconhecimento da impossibilidade de se verter plenamente o sentido de uma mensagem. Quaisquer que sejam as concepções que se tenha sobre o assunto, contudo, dois fatos sempre hão de perturbá—las, em maior ou menor grau, dependendo do ponto de vista que se adote. Primeiro, deve—se reconhecer que, na atividade do tradutor, sempre haverá um resquício da velha máxima de que ele é um traidor, denúncia de que a diferença, inescapavelmente, sempre há de rondar a passagem entre línguas, por mais que se almeje o contrário. Depois, há de se notar ainda que um exercício tradutório é sempre, de maneira ambígua, não só uma tentativa de compreender o outro, mas também, em certa medida, de dominá—lo. Todavia, “O filho de Sêmele” não aparece como um simples ato desse tipo. Ele não é um poema e suas traduções. É um poema que surge do cruzamento de várias vozes, tecido polifônico de diferenças. Nele é secundária a questão de que traduzir é trair, pois pouco lhe importa o quão fiéis são as várias versões do poema original, seja como forma, seja como sentido (embora, na verdade, sejam todas exímias). Emblemática, nesse aspecto, talvez seja a tradução homofônica de Charles Bernstein, que abre mão de uma correspondência semântica mais imediata entre as palavras, para se fazer recriação a partir dos significantes sonoros. No todo, o que importa, antes que a operação de passagem entre as línguas, é a soma das vozes, unidas na elaboração de uma pletora de novos sentidos, no mesmo movimento em que elas — as vozes — se chocam ruidosamente nas suas evidentes diferenças, compondo uma música bárbara, irredutivelmente estrangeira, de dissonâncias que significam. Da estranheza desses sons, um cidadão tcheco ou sérvio, por exemplo, mesmo sem entender nada de português, será capaz certamente de extrair um sentido geral a partir dos fragmentos em sua língua e da constatação de que se trata de um encontro, dança ou combate de versões de um mesmo poema.
Retomando Leminski, que falou, certa vez, que um texto é um osíris que precisa de renascer de suas leituras, pode—se enxergar o “Filho de Sêmele” como um deus despedaçado, morto de ser como nos versos originais de Bonvicino, rasgado agora pelas muitas vozes que o compõem. Dionisio — esse avatar de Osíris, invocado indiretamente por meio do nome de sua mãe —, ausente como palavra ou figura no poema, está nele presente como uma força errática, um princípio vivo de mutação, um alude de descobertas, uma cornucópia monstruosa de enganos significantes que já começa a esconder—se/mostrar—se no título, perífrase de uma ausência, máscara de uma máscara.
É interessante lembrar que no mito grego há dois Dionisios; o primeiro, chamado Zagreu, foi morto e despedaçado pelos titãs; o segundo, o filho de Sêmele (que significa “terra” em traco—frígo), foi arrancado do ventre da mãe, inseminada pelo sangue daquele que morrera, no momento em que ela tombava fulminada pela manifestação da glória de Zeus. Talvez seja temerário, mas, no mínimo, é estimulante traçar um paralelo entre essa história e um poema que, desmembrado pelas traduções que o cruzam, surge pleno dessa doxa, dessa aparência geradora de sentidos, que há alguns parágrafos identifiquei com uma forma de epifania profana (se é que isso é possível).
O filho de Sêmele é um deus sempre em disputa, um deus que parece surgir do próprio combate entre as coisas, de modo que Nietzsche acabou por definir o dionisíaco como “força por toda parte, como jogo de forças e ondas de força ao mesmo tempo um e múltiplo…”, como um “eternamente—criar—a—si—próprio” e um “eternamente—destruir—a—si—próprio” — algo que lembra, até certo ponto, os movimentos contrários/contraditórios do poema de Bonvicino. As suas lutas são um princípio gerador, forma de reciclagem das coisas, num jogo, porém, inútil, por nutrir—se da pura “felicidade do círculo” (para usar uma outra imagem do filósofo alemão).
Como conciliar isso com uma obra que, no seu pórtico, já se anuncia como um “poema—livro, em protesto contra a guerra promovida pela OTAN/NATO”? (Observar que na própria variação de como se grafa o nome desse organismo já há uma referência à multiplicidade de línguas) Como fica isso diante daquela inutilidade que há pouco eu atribuía tanto à guerra quanto à poesia?
Cumpre notar que ler “Me transformo ou o Filho de Sêmele” como um poema que fala da guerra ou mostra a guerra depende de algo que está propriamente fora dele. Tal leitura só é possível a partir da dedicatória a Odile Cisneros e Fabiano Calixto que abre o livro e traz a nota de protesto que acabei de transcrever. Estamos aqui na presença de um elemento contextual, de uma apropriação sígnica que realça, de certo modo, o fato de que o “dentro” sempre depende, em certa medida, do “fora”. O poema original de Régis Bonvicino já mostrava o eu como necessariamente habitado pelo outro. Na verdade, a própria “imagem poética é a outridad”, como já disse Octávio Paz. O que era oposição entre identidade e alteridade num nível individual ganhou, entretanto, outra conotação diante da dança de línguas propiciada pelo cruzamento entre o texto primeiro e suas traduções. “Fora” e “dentro”, os dois lados da janela/ fenêtre/window/ okno/prozor/finestra/ ventana, ganham agora um teor, digamos, cultural, geopolítico — além de (e principalmente) ético —, que é catalisado pela nota de protesto — esse outro capturado pelo poema, não como inimigo, mas como alimento, numa forma de antropofagia.
A dedicatória traça uma isotopia de leitura muito particular para o poema. Entretanto, a despeito dela, desde a sua primeira aparição, “Me transformo” oferece uma leitura a contrapelo da guerra, na medida em que, como toda verdadeira poesia, traz para o palco uma cena em que a ambigüidade, o paradoxo e a alteridade voam livres. O brilho da nova versão em livro está em reconhecer isso e lançar uma outra possibilidade de geração de sentidos a partir da mescla de falas irredutivelmente diferentes que se aproximam, sem tangenciá—lo nunca, de um indizível que não pode ser capturado, espaço que escapa entre as línguas e se coloca no centro desse poema descentrado, como uma resistência perene, forma perfeita de outridad, sem a qual, contudo, o poema não existe. “O Filho de Sêmele”, como excesso e como falta, faz—se, assim, um grito contra o excesso e a falta da guerra. Nesse sentido, ele é mais contrário ou contraditório à guerra, do que quando, assumindo uma posição política, se declara simplesmente contra a intervenção da OTAN/NATO. Ele não recusa o que tem em si de demência, de dionisíaco, em face da loucura da guerra, que quer se mascarar de razão. Nas suas antíteses, nos oxímoros, na junção das vozes que nem sempre se entendem, mas dialogam apesar disso, ele paradoxa a doxa da guerra. E, nesse ponto, pouco importa que seja inútil como arma de persuasão. Como poema, é alumbramento feito de obscuridade e nisso mora a sua razão e o seu mito. Cabe a nós juntar seus pedaços e reconstruir Zagreu como o filho de Sêmele, essa força de contradição em que o um é o outro, capaz de mostrar, numa centelha, o que a guerra tem de insano e de inútil. E pouco importa que a poesia, seja ela mesma inútil. “Perante a história, a literatura parece desarmada. As mais belas obras do mundo não impedirão a guerra, não apagarão as marcas da miséria humana. Mas, privado da arte, o homem estaria amputado de sua melhor parte, incapaz de legar sua imagem à história” (P. de Boisdefre).
Romulo Valle Salvino