Obra reúne a produção de Régis Bonvicino, marcada pelo deslocamento
Até agora, de Régis Bonvicino. Editora Imprensa Oficial, 564 páginas. R$ 40
Franklin Alves Dassie
A publicação de Até agora, poemas reunidos de Régis Bonvicino, é algo importante no cenário poético brasileiro. Primeiro, porque muitos dos livros aí reunidos já estão esgotados e não tiveram segundas edições. Segundo, porque toda reunião é uma oportunidade de acompanhar as reflexões propostas pelo autor e o desdobramento delas ao longo de seus livros. E uma das questões que o leitor identifica em Até agora é a sensação de estar acuado que o poema “Não há saídas”, de Sósia da cópia, resume: “não há saídas! só ruas viadutos! Avenidas”. A cidade se apresenta então como um lugar capaz de acuar o homem e isso acontece, entre outras formas, através dos sons que ele experimenta ao percorrê-la. “Zap” de 33 poemas encena isso: “zap de ras e ou reps de sus e prés, é o trânsito transe que franze sons pá”. A poesia de Régis filia-se assim aos artistas que solicitaram a experiência sensorial da cidade: entre viadutos e avenidas, atento a cada som, num percurso quase sempre sobressaltado.
A sensação de estar acuado, entretanto, se desdobra. Régis encena alguém que compreende sua relação com o espaço a partir de uma ideia de deslocamento: há quase sempre alguém que se encontra acuado e, sobretudo, deslocado, fora do lugar. Em “O beija-flor” – poema de Más companhias –, um pássaro procura “flor para beijar”, “água pura para beber” e “inseto para comer” e não encontra nada, daí se pergunta: “em que mundo estou?” Esse mundo parece às vezes ser construído mesmo para deixar o sujeito deslocado, como lemos em “Composição”, de Céu-eclipse: “Cano com furos equidistantes fixo no teto lançando jatos de água destilada lance de paralelepípedos desalinhando ninguém neles se ajustando grades de ferro pontiagudas em parapeitos de vitrine e janela de alcance mínimo para que ninguém se deite nos espaços vazios ferros retorcidos em portar no teatro além dos jatos câmera canteiro árvore de onde sai a água flores vaso espinho”.
A ideia de estar deslocado – fora de lugar – se relaciona também com a percepção da passagem do tempo. Em “Meses eunucos”, de Outros poemas, isso é assim encenado: “melancolia/ do dia a dia/ sol-agonia/ dos mil invernos”. A rotina claustrofóbica e improdutiva pode ser observada ainda em “Sempre”, de Ossos de borboleta: “Dias/ no quarto/ dias/ em retângulos”.
Ao mesmo tempo em que identifica a sensação de estar acuado e fora do lugar, o leitor percebe outra em Até agora: a do poema como um espaço alternativo aos espaços capaz de acuar o homem. Daí a compreensão do poema como “Abrigo contra os abismos”. Mas isso não é encenado de forma romântica, uma vez que Régis sabe que a poesia não é a “liberdade sob palavra, / é liberdade atordoada”. E lembra também que quem aí fala “Não é apenas um ser de palavras, / é uma tinta encarnada”. É na escritura do poema que ele imagina esses outros lugares, como podemos ler no significativo “Entre”, de Céu-eclipse: “Entre os motores/ e ruídos/ (pio/ dissonante/ e seco/ estilhaço) / o voo do pássaro/ cria/ uma nova hipótese de espaço”.
A poesia não é um lugar utópico, um lugar de certezas, ela é uma “hipótese” e nesse sentido um “pio dissonante” – é a possibilidade de sabotar um discurso que procura fixar identidades. Através do poema, Régis solicita outras vozes, se transforma em outros. “Me transformo”, de Ossos de borboleta, explica isso: “Me transformo,/ outra janela – / outro/ que se afasta e não se reaproxima”. A estratégia é interessante, pois impede que o poema seja um espaço de identidades fixas (outros são capazes de atravessá-lo) e, sobretudo, uma atitude comprometida ideologicamente com qualquer movimento, mas não impede que esse atravessamento se configure como um gesto político.
A poesia de Régis é atravessada pelo “discurso” das flores em “Quarto poema (canalha densamente canina)”, do livro Remorso do cosmos: “Flores exalam medo,/ cólera de cor,/ magnólias exalam silêncio/ tulipa intimidada”. Animais também atravessam os poemas de Até agora, como, por exemplo, o lobo-guará do poema “Extinção” (incluído em Página órfã), em que um lobo, “avesso ao dia, tímido”, evita a cidade “para fugir do ataque/ cada vez mais inevitável/ dos cachorros” e, perdido, acaba errante em busca de comida.
Obra mostra como a arte sugere uma “saída”
A poesia dele é atravessada ainda por outras línguas, como em “Sem título (3) (between, entre)” e “Sem título (3) (duas vozes)”, ambos de Remorso do cosmos, e “Definitions of Brazil”, de Página órfã, que incorporam o inglês. Atravessamento que se desdobra nas traduções que Régis fez de Robert Creeley, Charles Bernstein, Douglas Messerli, entre outros.
Até agora é a oportunidade de o leitor conhecer esses procedimentos numa das obras mais instigantes do cenário poético brasileiro, de entrar em contato com uma produção que, ao colocar essas questões em jogo, mostra como o discurso poético funciona como um espaço de intervenção. Enfim, de mostrar como a arte sugere uma “saída”, mesmo que essa seja apenas uma “hipótese”.