A reunião de toda a poesia de Décio Pignatari, um dos poetas centrais do século 20 brasileiro, de 1950 a 2000, neste novo livro, de boa qualidade gráfica, tem, entre muitos significados, o de “permitir” novas leituras, novas legibilidades, novas hipóteses de sentido, para seus poemas; hipóteses mais livres e menos previsíveis, na contramão dos discursos oficiais que foram produzidos ao longo desses mais de quarenta anos, por ele mesmo, por seus amigos e por seus adversários.
Pignatari é, para mim, o poeta do contraste e da variedade, traços que lhe conferem um caráter quase ímpar no cenário da poesia brasileira. Contraste, que se pode verificar no jogo exímio entre o alto e o baixo calão, explícito desde os seus primeiros textos, e, depois, no confronto entre o verso, a palavra e as visualidades da escrita e também no confronto entre a idéia de originalidade e de cópia, quando, por exemplo, incorpora, neste volume, traduções desacompanhadas dos poemas em suas línguas de origem. Variedade, que se pode comprovar no esforço do poeta para inventar e explorar gêneros vários de poesia.
A perícia em trabalhar oposições fez com que Pignatari escrevesse, a meu ver, um dos mais contudentes poemas dos anos de 1950, “O Jogral e a prostituta negra”. Em sua fusão bem sucedida de verso e prosa, em sua inflexão teatral sóbria, ele narra, como o próprio título anuncia, o encontro do poeta com uma prostituta negra, num cenário urbano: “ … É à hora carbôni-/ ca e o sol em mormaço / entre sonhando e insone / A legião dos ofendidos demanda / tuas pernas em M / silenciosa moenda do crepúsculo …”. Há inúmeros outros exemplos de versos agudos, neste embate entre alto e baixo calão, na poesia de Pignatari, este que transcrevo a seguir um tanto rilkeano: “ … Prédios mergulham ramos de cimento, / Néons fazem dos olhos coágulos de seixos, / E esquinas lanham flancos desse rio sem peixes / De que sou fonte e náufrago no intento”.
Retomemos a tópica da variedade, que mais se evidencia, nele, em sua produção visual, que, no entanto, a confirmar a idéia permanente do contraste, nunca abandona a palavra. São de sua autoria, a meu ver, os exemplos mais cabais daquilo que se convencionou chamar de poema concreto, que, nos anos de 1950 e 1960, teve o mérito de chamar a atenção para uma determinada substantividade da poesia, que se estava perdendo. Antes de dar exemplos, gostaria de dizer que entendo por poema concreto aquele que, trabalhando com paronomásias, numa clave minimalista, com um vocabulário coloquial, apropriou-se da idéia de design industrial, rasurando, também, em tese, a idéia do “eu” lírico. (A ausência e o conservadorismo da crítica, entre outros fatores, permitiu que o conceito de “concretismo” como vanguarda se alargasse indevidamente e se estendesse absurdamente no tempo).
Exemplos, a meu ver, dos mais bem sucedidos e, por isso mesmo, ainda vivos poemas concretos: “beba coca cola”, num registro, virulento, então inédito, de antipropaganda; o poema é composto por e com doze letras, numa descontrução do slogan, que finda no brutalismo de “ … babe (…) / caco / cola / cloaca”. E, num registro mais lírico, por mais paradoxal que pareça, o poema “organismo”, onde a palavra organismo, por meio de tratamento visual, se visceraliza e se transforma na palavra orgasmo e, por fim, na mera letra o, também de espanto!
Falando em palavras, gostaria de finalizar esta nota mencionando um dos mais fortes momentos do volume, o poema “sem essa palavra”, do beat norte-americano, já morto, Gregory Corso. Creio que sua última estrofe define, em sua ambivalência, o tom da variedade e do contraste da obra de seu recriador: “ … Não é meu vocábulo / e já estou cheio dos seus / É melhor cortar-lhe os lábios / cortar as suas orelhas sem ouvidos / queimar o seu dicionário / É melhor / que os seus olhos ouçam e falem além disso”.
Poesia Pois é Poesia, Décio Pignatari
Ateliê Editorial – Editora Unicamp, 340 páginas, 2004