Convergência, de 1970, escrito entre 1963 e 1966, foi o último livro de poemas publicado em vida por Murilo Mendes. O livro é, na extensão de seus 145 textos, desigual: alterna momentos altos, definitivos, com momentos baixos – aqueles nos quais as palavras perdem-se em paronomásias gratuitas. Esses momentos mais baixos, que não chegam a afetar a importância do volume, são o que se pode chamar de “abuso de moda”. A paronomásia (trocadilho) ingressou como recurso fundamental na poesia brasileira com o concretismo (1956). De novidade (recurso de impacto), foi aos poucos, com o uso excessivo, tornando-se um meio vazio, por si só inexpressivo.
O excesso de poemas enumerativos, pontuados por trocadilhos, não retira, entretanto, a importância do livro, que consiste, a meu ver, na incorporação sistemática da crítica à poesia. Não foi, evidentemente, Murilo Mendes quem inventou esse tipo de poema na literatura brasileira contemporânea. Em Drummond, em Bandeira e, sobretudo, em Cabral e na poesia concreta, ele (poema crítico) já existia, mas, quase sempre com feições mais semelhantes aos de um poema tout court.
Em Convergência, a incorporação do pensamento crítico rompe, a partir de dentro, com as aparências do poema, que se torna abertamente ensaístico, especulativo em relação a um tema ou a um artista (poetas, pintores, músicos etc.) Leia-se, por exemplo, “Grafito para Casimir Malévitch”:
Casimir Malévitch pintor/ Situa o objeto abatido/ Esgotado pelo futuro:/ Suprime-o/ Instalando em seu lugar/ Uma paisagem de cilindros & triângulos/ Onde passeamos; dentro/ Depois cria:/ Quadrado negro em campo branco,/ Estema do tempo moderno (…).
O que distingue, a meu ver, Convergência é que, embora críticos, ensaísticos, seus poemas não se esgotam em si mesmos e tampouco numa metalinguagem cega: procuram sempre agarrar um objeto, uma reflexão, alguma coisa além de suas próprias palavras. Leia-se, nesse sentido, “Murilograma a Ungaretti”: “(…) Assumir a palavra refratária/ Nossa única herança e território./ Friovilento, já extrair a coisa/ Sinônimo de palavras, revelando-a (…).”
Aqui me socorro de João Alexandre Barbosa:
(…) Não importa: embora divergindo no que se refere ao momento marcante dessa direção assumida por Murilo Mendes, tanto Haroldo de Campos quanto Alfredo Bosi coincidem em vê-la como fundada na busca de uma objetividade cada vez mais crescente (…)” (A metáfora crítica, p. 126).
Em Convergência, Murilo parece assumir plenamente o roteiro traçado no poema “Cemitério”, da coletânea Poesia liberdade (1947): “Céu azul com animais/ E uma corneta vibrando/ Pobre vento em personalidade/ Que não traduz a morte/ Nem sugere Emile Bronté/ Mas útil vento humano/ Que recorda os vivos/ – Os vivos sem metafísica, sem abrigo (…).”
O poema, como instrumento de compreensão dos vivos, mesmo que fisicamente mortos (sem metafísica e sem abrigo), parece ser o objetivo de Mendes em Convergência. Leia-se o trecho final de “Murilograma a Cesário Verde”: “(…) Noite nas sílabas:/ Regressas ao quarto só/ do real extraindo/ O ato de operar na mesa o próprio texto,/ Exata matéria tua/ extrovivendo.” A busca da objetividade se articula com o poema crítico, ensaístico, mas não se esgota na metalinguagem cega porque “já extrair a coisa/ Sinônimo de palavras/ revelando-a”.
Um dos aspectos que devem ser destacados em Convergência, 23 anos depois, é o do original trabalho com o léxico (vocabulário) promovido pelo poeta. Murilo inicia um poema com frases coloquiais, para, logo em seguida, criar estranhamentos súbitos na seqüência de palavras: “(…) Não poltrona com pés de metal/ Knoll/ Ou projetada por um sub-Moholy Nagy/ Com nota didascálica (…).” O estranhamento ocorre com a palavra didascálica, utilizada aqui como sinônimo de didática. Os exemplos são inúmeros. “Texto de informação”: “(…) Inserido numa paisagem quadrilíngüe/ Tento operar com violência/ Essa coluna vertebral/ a linguagem/ Esquadrinho nas palavras/ Meu espaço e meu tempo justapostos/ E dobro-me ao fáscino dos fatos/ Que investem a página branca (…).” A palavra fáscino, de fascínio inventada, se choca com o clichê “inserido numa paisagem”. De qualquer modo, reafirma, por outro lado, a busca da objetividade: as palavras do poeta se dobram aos fatos, que tomam conta da página branca. O poema crítico ultrapassando a metalinguagem cega, aqui também em diálogo com Drummond.
Haroldo de Campos define com precisão – falando ele do Murilo até Tempo espanhol (1959) – a poesia desse mineiro cosmopolita:
(…) De fato, o poema de modo muriliano típico é uma espécie de gerador iterativo de sintagmas, que se escandem completos e acabados, uns após os outros, articulados por uma combinatória capaz de lobrigar a concórdia na discórdia (…). Esse poema de frases inteiras, não obstante, nega pela violência com que corta em arestas sucessivas, arrombando com a alavanca da imagem imprevista e impressível, a porta blindada do silogismo” (Metalinguagem, 4. ed., p. 66).
Essa observação esclarece também os textos incluídos em Convergência. Dela, pode-se retirar uma idéia significativa acerca da poética muriliana: a de uma poesia baseada numa sintaxe de arestas.
É inquestionável que Convergência foi influenciado pelo impacto da poesia concreta em Murilo, que, [ao lado de] Manuel Bandeira, procurou entendê-la e incorporá-la a sua obra. Porém, é inquestionável também que os poemas desta coletânea prefiguram o que Haroldo de Campos nomeou como poesia do (período) pós-utópico, na década de 1970. A própria poesia pós-concretista feita por Haroldo acabou se influenciando por Murilo Mendes, sobretudo, pelo Murilo de Convergência. Leia-se Murilo: “(…) Panta rhei/ Todas as coisas fluem/ correm/ decorrem (…)” (“Murilograma a Heráclito de Éfeso”). Leia-se Haroldo: “pânta rei/ tudo riocorrente”. (“Transluminuras”, in: A educação dos cinco sentidos, 1985).
Convergência é um livro rico em sua estruturação crítica sistemática. Há muito o que dizer sobre ele. Para finalizar, destaco seu caráter cosmopolita: sem perder de vista o Brasil, os temas pessoais, os artistas brasileiros, lança um olhar ensaístico sobre toda a arte contemporânea. Murilo escolheu seu próprio passado. Augusto dos Anjos, por exemplo, é lido a partir de Jeronimus Bosch. Li-Po, Kafka, Eisenstein, Maiakóvski, Bach, Bashô, Hoelderlin, Guido Cavalcanti, Mallarmé, Rimbaud, Nerval etc. são revisitados. As artes são consideradas, por ele, em relação. Há nisso uma pedra de toque para o presente brasileiro. Murilo, em “Texto de consulta”, se indaga: “(…) Existe um texto regional/ nacional/ Ou todo texto é universal?/ Que relação do texto/ com os dedos? Com os textos alheios?” Ele mesmo, neste poema, responde: “O texto-coisa me espia/ Com o olho de outrem”. Que assim seja.
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JOÃO CABRAL, POR MURILO MENDES, E VICE-VERSA[2]
“Murilograma a João Cabral de Melo Neto”, de 1964, incluído na coletânea Convergência (Duas Cidades, 1970), é – mais do que homenagem – roteiro crítico, ainda estimulante, da poesia de João Cabral. Nesse poema, Murilo aponta as diferenças e as semelhanças que imagina existir entre seu trabalho e o de Cabral, com uma lente objetiva, que desliza, enfatizando seus aspectos externos – o que se pode chamar de os seus “rios de fora”.
Em Agrestes (1985), João Cabral, num texto sobre Marianne Moore, escreve: “(…) Quis falar de coisas./ Mas na seleção dessas coisas/ Não haverá um falar de mim?”
Em “Murilo e os Rios”, também publicado em Agrestes, Cabral devolve a homenagem, centrando-a, entretanto, na pessoa de Murilo Mendes, a partir de uma anedota: “(…) Explicação daquele rito,/ vinte anos depois, aqui tento:/ nos rios, cortejava o Rio,/ o que, sem lembrar, temos dentro.”
Rios de fora. Rios de dentro. Diálogo nascido de “fértil convívio/ & ritmo alternado recíproco”.
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“Murilograma” começa por estabelecer semelhanças e por marcar diferenças. Semelhanças críticas, contrariadas pelas diferenças. Entre as semelhanças: o Brasil e a Espanha. O próprio Cabral explicitaria:
Quanto à Espanha (…): devo dizer que a sua deixa a minha humilhada. Você tem sobre este servidor duas vantagens para falar da Espanha: uma é o tom de veemência explosiva (…) enquanto que a minha é uma veemência incisiva, pouco espanhola; a segunda vantagem é o seu catolicismo (…). No meu caso ocorre o contrário: só sou capaz de me interessar pela Espanha realista, a Espanha materialista, a Espanha das coisas (…). Exemplo: as corridas de touro, coisa inadmissível a uma Espanha-branca como eu: eu as diminuo às dimensões da estética… Quero dizer: sua posição intelectual é mais ampla e abarca a Espanha branca e negra (…).” (In: Murilo Mendes, de Laís Correa de Araújo, 1970).
O segundo verso do poema – “Entre mim e ti a caatinga,/ Entre mim e ti a montanha” – é uma síntese poética das explicações dadas em prosa por Cabral. A caatinga, com a plasticidade incisiva dos cactos, com a secura, inevitável realismo, evidente materialismo. Um nascido em Recife, o outro nas alturas das montanhas de Minas Gerais. A elevação da montanha, propiciando visão vertical.
Na terceira estrofe do texto, Velásquez e Graciliano Ramos aproximam os poetas, que se afastam, no momento seguinte; “(…) o barroco,/ A cruz, António Gaudí.” Veemência explosiva contra veemência incisiva (as dimensões da estética), que, em ritmo alternado, se reencontram: “Comigo e contigo o antifascio,/ Comigo e contigo a Gestalt.” A busca da modernidade construtivista aparece, aqui, equilibrada com um sentido político, um mínimo múltiplo comum entre os dois: o antifascio, que deve ser entendido como antifascismo, antiautoritarismo, e pode, num resgate estético, ser lido como o antifácil. No bloco seguinte, Murilo escreve: “Sim: não é fácil chamar-se/ João Cabral de Melo Neto./ Força é ser engenheiro/ Mesmo sem curso & diploma,/ Pernambucano espanhol./ Vendo a vida sem dissímulo (…).”
Visões convergentes: a poesia de João Cabral não finge, não atenua, vê a vida com veemência incisiva. É realista, materialista: “Os rios, de tudo o que existe vivo,/ vivem a vida mais definida e clara;/ para os rios, viver vale se definir/ e definir viver com a língua da água.” O final da estrofe se apresenta mais dramático: “O rio corre; e assim viver para o rio/ vale não só ser corrido pelo tempo:/ o rio o corre; e pois com sua água,/ viver vale suicidar-se, todo o tempo” (“Os rios de um dia”, in: A educação pela pedra, 1966).
Viver vale suicidar-se, todo o tempo. É o oximóron, anotado em “Murilograma”.
“Murilograma” prossegue em sua viagem crítica: “construir linguagem enxuta/ Mantendo-a na precisão,/ articular poesia/ Em densa forma de quatro,/ Em ritmos de ordem serial,/ Aderir ao próprio texto/ Com o corpo, escrever com o/ Corpo; /Exato que nem uma faca.”
“Escrever com o corpo” é uma espécie de tradução para materialismo e “exato que nem uma faca” sinônimo de veemência incisiva. Essas características permanecem na obra atual de João Cabral.
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Há uma pequena novidade na poesia de João Cabral, a partir da coletânea Museu de tudo (1975): é a narratividade, o relato associado à memória. É a assunção do anedótico, que traça plasticamente retratos do passado.
É aqui que se encaixa o poema “Murilo Mendes e os Rios”, devolvendo a homenagem prestada em “Murilograma”. O texto conta que, todas as vezes que Murilo cruzava um rio de automóvel, tirava o chapéu e dizia: “o Paraibuna te saluda.” Ao narrar o fato, Cabral acaba por traçar um retrato – como, por exemplo, Amedeo Modigliani – de Murilo: mão longa, episcopal. Sorriso ambíguo. Murilo, pode-se ver pelas fotos, tinha um rosto com formas greco-romanas, como traços longos (daí a analogia com Modigliani).
São as linhas mínimas do cubismo. Cabral registra, com dinamismo, a figura do poeta: “tirava o chapéu”, situação de movimento. A segunda estrofe acrescenta ao plasticismo da primeira um dado audiovisual: “e entredizia na voz surda:/ (…) o Paraibuna ‘te saluda’.” As duas últimas estrofes do poema, guardando elementos das anteriores, são críticas: João Cabral vai tentar explicar as razões do ritual joco-sério de Murilo. É interessante notar que Cabral se auto-retrata simultaneamente na situação: “(…) eu ria amarelo”,/ como se pode rir na missa.” E, assim, semanticamente a situação-poema se deslinda: “Explicação daquele rito,/ vinte anos depois, aqui tento:/ nos rios, cortejava o Rio,/ o que, sem lembrar, temos dentro.”
É evidente que Cabral se refere também à cidade do Rio de Janeiro. É evidente que se refere a um “rio metafísico”, o rio de dentro (“O rio corre; e assim viver para o rio/ vale não só ser corrido pelo tempo […]”). É clara a referência ao ato de rir. Mas o materialismo incisivo de Cabral – como ele mesmo se observou na carta a Murilo, estampada no livro de Laís Corrêa do Araújo – não permite que não se capte a dimensão estética desse retrato: a analogia, a semelhança física entre o rosto de Murilo Mendes – episcopal alongado – e o Pão de Açúcar, na cidade do Rio de Janeiro. Pode-se imaginar o rosto de Murilo contra as linhas do morro.
“A poesia de Murilo Mendes sempre me foi guia por sua plasticidade” – dizia João Cabral.
Poderíamos acrescentar no “Murilograma a João Cabral de Melo Neto” um novo verso: “Comigo e contigo Amedeo Modigliani.”
***
MURILO MENDES E OS RIOS
João Cabral de Melo Neto
(Agrestes)
Murilo Mendes, cada vez que
de carro cruzava um rio,
com a mão longa, episcopal,
e com certo sorriso ambíguo,
reverente, tirava o chapéu
e entredizia na voz surda:
Guadalete (ou que rio fosse),
o Paraibuna “te saluda”.
Nunca perguntei onde a linha
entre o de sério e de ironia
do ritual: eu ria amarelo,
como se pode rir na missa.
Explicação daquele rito,
vinte anos depois, aqui tento:
nos rios, cortejava o Rio,
o que, sem lembrar,
temos dentro.
Murilo Mendes
por Alberto da Veiga Guignard
Notas:
[1] Publicado originalmente na Folha de S. Paulo em 14 de março de 1993.
[2] Publicado originalmente na Folha de S. Paulo em 24 de outubro de 1993.