Prefácio ao livro Joan Miró, de João Cabral de Melo Neto, editado em português, catalão e espanhol, pela Casa Amèrica Catalunya, 2008, Barcelona.
João Cabral de Melo Neto (1920-1999) possui dez livros publicados no mundo hispano-americano [1], todavia é conhecido na Espanha apenas por um círculo restrito de intelectuais e aficionados, sem um leitorado, digamos, mais popular. Entretanto, ele é o mais “espanhol” dos poetas brasileiros e o maior poeta de língua brasileira ao lado de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Merecia, naquele país, uma antologia ampla e digna. Como afirma, com pertinência, Nicolás Extremera Tapia [2], Cabral parte de Stéphane Mallarmé (1842-1898), do surrealismo francês (que a meu ver, logo troca, após Pedra do sono, seu primeiro livro, de 1942, pelo suíço Le Corbusier (1887-1965) e pelo construtivismo, de modo geral) e de Paul Valéry (1871-1945) para encontrar na Espanha, em primeiro lugar na Catalunha, suas origens estéticas e vitais. Em abril de 1947, aos 27 anos, chega a Barcelona como vice-cônsul e ali permanece até agosto de 1950. De 1967 a 1969, retorna à cidade na condição de cônsul-geral do Brasil.
Embora contasse com Drummond como seu primeiro mestre – o “vanguardista” da Revista de Antropofagia, de 1928, dirigida por Oswald de Andrade (1890-1954), e autor do polêmico e “clássico” poema “No meio do caminho” –, por questão de idade Cabral não teve contato constante, como Drummond, com os líderes da Semana de Arte Moderna, Oswald de Andrade e Mário de Andrade (1893-1945). Atenção: nenhum dos três Andrades é parente. Em 1940, Cabral foi apresentado, no Rio de Janeiro, a Drummond por outro grande poeta brasileiro, Murilo Mendes (1901-1975), o qual também possuía muitos vínculos com a Espanha. No entanto, Cabral cumpriria, parcialmente ao menos, o programa contido nos manifestos de Oswald, o Manifesto da Poesia Pau-Brasil (1924) e o Manifesto Antropófago (1928). Extraio de Pau-Brasil uma afirmação que poderia definir a obra de Cabral: “A poesia existe nos fatos. Os caseabres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos”. Sua poesia é feita de fatos e está vinculada aos engenhos de açúcar, onde passou a infância, nas cidades de São Lourenço da Mata e Moreno (Pernambuco) e, depois, aos mangues e às palafitas (favelas aquáticas) de sua juventude em Recife, onde conviveu com: “… Mi pobreza es tal que no/ traigo grandes regalos/ traigo a la madre cangrejos/ pescados en estos lodos…” [3]. Do Manifesto Antropófago, retiro uma frase que se coaduna com a observação de Tapia: “Só me interessa o que não é meu”, ou seja, o que não é “brasileiro”, exceção feita ao estado de Pernambuco, que, em seus jogos de dualidade, João relaciona com a Espanha: masculino (Barcelona)/feminino (Sevilha), mineral/vegetal (citando, como exemplo, um verso de Lorca, numa entrevista a Tapia [4]: “Los ojitos de tu cara tienen los cristales muertos”) música/silêncio (o poema “A palo seco”), vida/morte e a própria dualidade Pernambuco/Espanha. Em entrevista concedida a mim, em 7 de janeiro de 1980, o poeta fez restrições aos líderes da vanguarda modernista brasileira: “De Mário de Andrade gosto do Losango cáqui (1926) e da Lira paulistana (1945), que conheci, ainda em originais, através de Carlos Drummond”. Sobre o Oswald poeta, asseverou: “Empata com Mário, não troco um pelo outro. Não sofri a menor influência de nenhum dos dois” [5].
El diamante sonría al crepúsculo, Joan Miró, 1947
A declaração me parece injusta no que se refere a Oswald de Andrade (Mário nunca viajou para fora do Brasil): o maior pensador de poesia de vanguarda brasileiro e, quiçá, do mundo, haja vista o prestígio e a popularidade de seus manifestos até hoje, em nível internacional. Oswald era um cosmopolita que se casou com a maior pintora brasileira, Tarsila do Amaral (1886-1973), e conviveu, ao lado dela, aluna de Fernand Léger (1881-1955) e de André Lhote (1885-1962), com Constantin Brancusi (1876-1957), Blaise Cendrars (1887-1961), Erik Satie (1866-1925), Jean Cocteau (1889-1963) e outros, na temporada que moravam em Paris. Sem as bases antropofágicas lançadas por Oswald e Tarsila, Cabral não existiria com a força que existiu, embora os estilos sejam bastante diversos. Tarsila é autora de quadros como A negra (1923), pintado em Paris, Abaporu (1928) e Antropofagia (1929) – os mais marcantes da cultura brasileira. Em A negra, Tarsila destrói os elementos cubistas legerianos, ao fundo, com a figura exagerada de uma negra brasileira à frente, beiços e peitos enormes, provocando um contraste extremado entre o limpo e geométrico e o sujo e assimétrico. A palavra “abaporu” em tupi-guarani quer dizer “o homem que come” e deu nome à tela que desencadeou a escritura do Manifesto Antropófago.
O que quero salientar é que João Cabral foi o único poeta brasileiro a participar de um movimento de vanguarda no exterior, mesmo que num país periférico da Europa (embora o movimento não o fosse). Em Barcelona, alinhou-se ao grupo Dau al Set, dos poetas Joan Brossa (1919-1998) e Arnau Puig (1926). E, sobretudo, foi o único a participar desse movimento de vanguarda ao lado de pintores universais, como Joan Miró (1893-1983) – notar o anagrama nas datas de nascimento e morte –, que conheceu em 1947; Antoni Tàpies (1923), que conheceu em 1949; Joan Ponç (1927-1984); Modest Cuixart (1925) e Pere Tort (1916-2006), radicado na cidade de São Paulo desde 1952, onde morreu. A João instigava mais a pintura do que a música, com exceção do flamenco, que dizia ser tão estridente que lhe era útil também para não o deixar dormir, pois sentia-se sempre com muito sono — lembrar que seu primeiro livro intitula-se Pedra do sono.
Com certeza, a vinda de Ponç ao Brasil em 1953 está ligada às suas conversas com o brasileiro. Ponç, com poucos recursos, tentou a vida na cidade de São Paulo, onde criou a escola de arte L’Espai (entre 1956 e 1960; não se sabe, com precisão, nada relativo a esse pintor no Brasil), e teve como aluno, entre outros, Nelson Leirner (1932) [6], um dos mais experimentais artistas plásticos brasileiros vivos. Não se sabe se retornou a Barcelona em 1963 ou em 1964, em virtude de ter estado internado, ao redor dessas datas, num manicômio, em São Paulo. Sabe-se que chegou ao Brasil, em 1953, com uma carta de apresentação de Joan Miró para Ciccillo Matarazzo (1898-1977), industrial riquíssimo e mecenas das artes, que fundou o Museu de Arte Moderna de São Paulo (1946) e a Bienal de São Paulo (1951).
Se em 2007 propus a Ariadna Lluis i Vidal-Folch, em Casa Amèrica Catalunya, que os catalães reivindicassem Cabral como um poeta catalão, reivindico agora Ponç como artista brasileiro. Ponç recebeu, em 1965, o prêmio de desenho da Bienal de São Paulo com a série Suite pájaros. Ouso ir além: Dau al Set é um movimento catalão-brasileiro. Salvador Riera, poeta de um único livro e morto em 1974, mudou-se para São Paulo nos 1950, onde conheceu Ponç e o gravador catalão Francesc Domingo (1893-1974) – que não estava ligado ao grupo de vanguarda e fixou residência no Brasil, onde morreu. Foi com os trabalhos desses dois artistas que Riera iniciou sua coleção, que em 1973 foi para a lendária Galeria Dau al Set. Riera tornou-se, em São Paulo, também próspero empresário do ramo de confecção de roupas.
Pintura, Joan Miró, 1954
No filme Recife/Sevilha [7] Tàpies afirma, exemplificando o diálogo entre os catalães e o brasileiro, que Cabral introduziu o grupo ao marxismo, crença que custaria ao brasileiro, em 1952, quando já servia em Londres, um inquérito administrativo em que era acusado de “subversão”. O episódio o levaria a ser exonerado do quadro de diplomatas – ao qual foi reintegrado em 1954 por uma ação ajuizada no Supremo Tribunal Federal, então sediado no Rio de Janeiro. Seis anos mais tarde, a Brasília de Lucio Costa, Oscar Niemeyer e Burle Marx seria inaugurada, subtraindo do Rio a condição de capital do país.
“Joan Miró”, o livro
Ponç afirma que seu trabalho girou, sempre, em torno do “mágico” e que o “mágico” era a essência de Dau al Set. É esse “mágico” que Cabral vai perquirir, em termos teóricos e analíticos, em seu ensaio sobre Joan Miró escrito por encomenda do amigo pintor para acompanhar suas gravuras em obra publicada em Barcelona em 1950 pelas Editions de L’Oc. Cabral demonstra como a “magia” e o surrealismo adquiriram feição muito própria e renovadora em Miró. Para ele, a pintura, como a conhecemos hoje, nasceu no Renascimento, quando ela se associou o objeto, “isto é, a representação utilitária, ou a utilidade da representação, à superfície decorada”, mediada pela noção de equilíbrio. E indaga: “Seria possível outra forma de composição (pós-Renascentista)? Seria possível devolver à superfície aquele sentido antigo que seu aprofundamento numa terceira dimensão destruiu completamente? A pintura de Miró me parece responder afirmativamente a esta pergunta”. Cabral prefere ver em La masía (1921-1922) não os dons de colorista e lírico exaltados pela crítica, mas “uma ordenação tão firmemente estabelecida, que não seria demais defini-lo como obra de um pintor marcado essencialmente pela preocupação de construir. Um quase Lhote”. Para Cabral, Miró simplesmente explode as formas do Renascimento, multiplicando quadros dentro de quadros, nem um pouco interessado na noção de “equilíbrio”.
Aponta o caráter não teórico do catalão: “Sua maneira de compor não pode ser reduzida a leis” e destaca que o pintor tampouco busca construir “novas leis”. Propõe Miró como o criador de uma “constante dinâmica”, e não de uma gramática. E explica que o que caracteriza o trabalho do artista, a partir de 1940, é o crescente poder da linha (rica), linha tal qual mola propulsora, que funciona como indicação e guia para o “fazer”, concluindo: “Na composição Renascentista a linha está deliberadamente empobrecida”. Vale a pena transcrever as palavras do poeta: “Em Miró, mais do que em nenhum outro artista, vejo uma enorme valorização do fazer. Pode-se dizer que, enquanto noutros o fazer é um meio para se chegar a um quadro, para realizar a expressão de coisas anteriores e estranhas a esse mesmo realizar, o quadro para Miró é um pretexto para o fazer. Miró não pinta quadros. Miró pinta”.
Capa do livro catalão
Retomemos o tema da “magia”, proposto por Ponç, e que desemboca no surrealismo. Escreve Cabral: “A Miró haveria de soar estranhamente a estética antiplástica dos surrealistas, interessados em criar um tipo de arte superior e independente dos gêneros de arte, pairando independente da realização objetiva de uma obra, e, às vezes, capaz de existir apesar de uma obra”. Em suma, o brasileiro percebe no surrealismo um desprezo pela forma, em razão de seu princípio do automatismo psíquico, forma que o surrealismo tenta anular, reduzir ao máximo, submetendo-a ao ditado do espontâneo, “ou menosprezar completamente, admitindo o frio e amaneirado registro de estados psicológicos ou visões oníricas, realizado posteriormente, dentro do clima de academia”. João define Miró como “tão unicamente pintor”, desinteressado desses tipos (surrealismo) de antipintura”. Vê a originalidade do artista catalão em: “Aquela lua ou aquela estrela não são jamais luas metafísicas ou luas de sonho. São luas e estrelas pintadas absolutamente puras de outras representações de luas ou de estrelas”. Faço um parêntesis para dar como exemplo pessoal El diamante sonríe al crepúsculo (1947), meu trabalho favorito de Miró, que ilustra bem a tese de Cabral. Creio, igualmente, que não se pode reduzir Joan Ponç ao rótulo de “surrealista”, seu trabalho, com índole contundente e feroz: transcende esse pequeno limite. O “mágico”, nele, advém mais de suas “fantasias” interiores, todavia não se torna o elemento único de suas telas, muito precisas e elaboradas, num “fazer com luta”, para me valer da expressão que Cabral aplica a Miró – a quem considera um inventor, desafeito às descobertas, pois, para ele, no autor de La estrella matinal (1940) não há solução que signifique uma vitória de mais de um minuto. É o Miró antimaneirista, admirado, com justiça, por Melo Neto.
Eric Hobsbawm [8], ao analisar as conseqüências da globalização, aponta uma questão séria, que a trava: o provincianismo dos políticos e da política, que – ao contrário da economia e de outros aspectos da vida – “não se globalizaram”. As linhas cruzadas de Miró, Cabral, Ponç e Tort – que viveu 36 anos em São Paulo, Catalunha e Brasil, quando este saía de quinze anos de ditadura (1930/1945, sob Getúlio Vargas, para, infelizmente, entrar em outra em 1964, que perdurou até 1985) e a Espanha estava esmagada e amordaça pelo general Franco –, esse encontro de inventores e inovadores de nacionalidades distintas, lega-nos um exemplo a ser explorado com mais assiduidade, apesar dos políticos e suas políticas tacanhas e atrasadas.
Capa do livro brasileiro
Imagens de Miró no livro brasileiro
Notas
[1] 1. Seis poemas de “Serial”. Trad. de Angel Crespo. Separata de: Revista de Cultura Brasileña, Madri, 1962; 2. “Poemas sobre Espanha de João Cabral de Melo Neto”. Trad. de Angel Crespo e Pilar Gómez Bedate. Separata de: Cuadernos Hispanoamericanos, Madri; 3. Muerte y vida Severina. Trad. de Angel Crespo e Gabino-Alejandro Carriedo. Lima, Instituto Nacional de Arte Dramática, 1969; 4. Antologia poética. Seleção e trad. de Margarita Russoto, Caracas, Fundarte, 1979; 5. Poemas. Trad. de Carlos Germán Belli. Lima, Centro de Estudos Brasileños, 1979; 6. Dos parlamentos. Trad. de Gabino-Alejandro Carriedo, Madri, 1980; 7. La educación por la piedra. Trad. de Pablo del Barco. Madri, Edición Visor, 1980; 8. Muerte y vida severina, Auto del frade. Trad. de Santiago Kovadloff. Buenos Aires, Edición Legasa, 1988; 9. Antologia poética. Trad. de Angel Crespo. Barcelona, Editorial Lúmen, 1990; 10. Piedra fundamental (Poesia y prosa). Coordenação, prólogo, cronologia e bibliografia de Felipe Fortuna e seleção e posfácio de Antonio Carlos Secchin. Biblioteca Ayacucho, 2002, Venezuela.
[2] “Notas para um trajecto poético”. Colóquio Letras,Fundação Calouste Gulbenkian, n. 157/158, jul. 2000.
[3] Estrofe de Muerte y vida severina, in Antologia poética. Trad. de Santiago Kovadloff, coordenação, prólogo, cronologia e bibliografia de Felipe Fortuna e seleção e posfácio de Antonio Carlos Secchin.
[4] Maresia. Revista de la Associación de Lusitanistas del Estado Español, direção Perfecto Cuadrado e Elena Losada Soler, n. 1/2006.
[5] Revista Polímica, São Paulo, n. 4, 1980, dirigida e editada por Aurora Fornoni Bernardini. E, agora, no website de Régis Bonvicino, seção Entrevistas. Disponível em: <http://regisbonvicino.com.br>.
[6] Depoimento de Nelson Leirner a Régis Bonvicino sobre Joan Ponç, em 19 jan. 2008, especialmente tomado para esta edição.
[7] Recife/Sevilha, João Cabral de Melo Neto (documentário). Direção de Bebeto Abrantes, 2003, com João Cabral de Melo Neto, Antoni Tàpies, Modest Cuixart, Arnau Puig e outros.
[8] Hobsbawm, Eric. Globalização, democracia e terrorismo. São Paulo, Companhia das Letras, 2007.