Breve livro de ensaios discute o suicídio e pergunta por que há quem opte por essa medida sem volta
O suicida
Jorge Luis Borges
Não haverá uma só estrela na noite
Não haverá noite
Me mato e comigo mato a soma
do universo intolerável
Apago as pirâmides, as medalhas
Os continentes, as caras
Quero apagar o acúmulo do passado
Quero fazer pó da história e pó do pó
Vejo o último pôr do sol
Ouço o último pássaro
Lego enfim o nada a ninguém
João Cabral de Melo Neto, em Museu de tudo, escreve: “Mas entre o fazer e não fazer/ mais vale o inútil do fazer”. Andrew Solomon, um crítico maior, optou, talvez, pelo inútil do pensar sobre o suicídio, porque segundo ele os estados e os sistemas privados de saúde de inúmeros países estão muito aquém do mínimo necessário para administrar essa questão, que atinge milhões de pessoas no mundo. Um crime da solidão: reflexões sobre o suicídio é o mais recente lançamento de Solomon no Brasil. Esta edição é singular: traz textos não incluídos em volumes estrangeiros. Solomon é autor de poucos, mas significativos livros, entre eles, O demônio do meio-dia: Um atlas da depressão, de 2001, no qual procurou uma compreensão multidisciplinar e abrangente da “depressão”, palavra que ele considera pobre para nomear um fenômeno amplo.
No primeiro ensaio de Um crime da solidão, Solomon discute as dores e conflitos de sua própria homossexualidade e a de um amigo que se matou. Usa o caso para também criticar a psicanálise: “A privacidade é um valor em moda no século 21, superestimado, e, com frequência, destrutivo; a psicanálise protocolar, fechada, foi o maior azar de meu amigo”. No lugar dessa privacidade, o autor propõe o diálogo entre psicanalistas, terapeutas e farmacologistas, bem como amigos e família. No segundo texto, relata como participou do suicídio assistido de sua mãe, que sofria de um câncer irreversível de ovário. A narrativa é desassombrada, narrada detalhe por detalhe: “Carolyn!, disse meu pai, mas ela não se mexeu mais. A morte de minha mãe era toda dela”. E diz, ao generalizar: “Uma quantidade imensa de pessoas vive em silencioso desespero e não se mata por não conseguir os meios necessários para fazê-lo”.
Em seguida, no terceiro e quarto capítulos, o autor analisa os suicídios recentes do ator Robin Williams, da estilista Kate Spade e do chef Anthony Bourdain (evitável, segundo ele): “A distância entre o triunfo público e o desespero particular é traiçoeira”; neste passo, anota, meio de acordo com os filósofos da Escola de Frankfurt, que “a modernidade é alienante e tem sido alienante há muito tempo”. Sobre o suicídio em si, em outro ponto, procura respostas para essa questão milenar: “O suicídio de Robin Williams demonstra que nenhum de nós está imune. Se é possível ser ‘estrela’ e ainda assim querer se matar, então todos nós estamos expostos à mesma vulnerabilidade”.
Solomon também trabalha o suicídio de Virginia Woolf e da poeta Sylvia Plath e seu filho, bem como do escritor David Foster Wallace, mais recente. É admirável que tenha a coragem de afirmar que o suicídio não qualifica a produção artística de Plath, que se qualificaria por si ainda que ela fosse uma pessoa feliz. Ao anotar a indiferença do suicídio para a obra da poeta, rompe um clichê central do mundo pop, que condena e glamoriza o ato, classificando-o de “antilógico”, mas, simultaneamente, o realça de modo sensacionalista.
O livro não deixa de criticar duramente o “orgulho gay”: “Sempre achei que a linguagem do orgulho gay tem dominado o establishment gay porque é, de fato, o oposto do que um grande número de gays vivencia”, concluindo: “A vergonha gay é endêmica. A culpa e a vergonha de ser gay levam ao ódio a si mesmo”. Ele discorre sobre “homofobia internalizada” e diz: “É preciso se livrar dos sintomas mais abjetos para construir uma vida melhor”. Assim, pontifica, o sintoma mais abjeto seria a própria homofobia internalizada. É grande o número de suicídios na comunidade LGBT.
Leitura áspera
Paro de fazer descrições sucintas dos ensaios para adotar a dicção pessoal de Solomon. O suicídio diz respeito à minha família. Para mim, ler o livro foi uma experiência áspera, porque sou filho e pai de suicidas. Minha filha, depressiva bipolar, morreu em outubro de 2018, e minha mãe, depressiva unipolar e alcoolista, em abril de 1979 — época em que a psiquiatria era bastante rudimentar. Minha filha sofria de psicofobia (aversão por pessoas que sofrem de doenças mentais). Isso a fez se isolar, o que é um dos fatores de aumento de risco. A sociedade aceita majoritariamente aqueles que são normopatas obnóxios — os normais conformistas e em conformidade e, ainda, por isso, submissos. O preconceito é feroz. E daí a relevância de se falar sobre o tema com todas as letras, como faz Solomon. Ninguém se mata porque quer; é uma solução definitiva para um problema temporário. Os sistemas de saúde, públicos e privados, ainda são muito precários, um tanto indisponíveis para o assunto e, pior, teleguiados pelos laboratórios farmacêuticos que visam ao lucro.
“É preciso que o paciente apreenda a ideia de que está tomando medicamentos e examinar se eles o tornam mais você ou se fizeram você se tornar outra pessoa.” A recomendação de Solomon vale também para os psiquiatras que acompanham seus pacientes. Os psiquiatras que “cuidaram” de minha filha, lastimavelmente, ministraram-lhe dezenas de remédios que a tornaram outra pessoa.
É espantoso o atraso do Brasil e de seus profissionais do sistema privado em especial. Terapeutas e psiquiatras reputam-se aptos e atualizados, algo que se revela falso com raras exceções. O suicídio nasce, principalmente, de uma depressão, como ensina Solomon, somada à impulsividade, e, de acordo com ele, é resultado de desespero, desamparo e da sensação de ser um fardo para os outros e para a sociedade. Ele se dá quando a paralisia é tamanha que parece não haver perspectiva alguma.
Este livro é de leitura imprescindível, embora eu tenha sentido falta de alguma discussão sobre as posições de Albert Camus. Em seu clássico ensaio O mito de Sísifo, Camus afirma: “Só existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio. Julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia”. Camus responde: se a vida é um absurdo, o suicídio (uma resignação) não é a resposta adequada; ao contrário, a resposta é a revolta, a rebeldia, a crítica. Solomon está implicitamente de acordo, ao desconstruir clichês e tabus e ao falar abertamente sobre a autodestruição definitiva, que é, nos dias atuais, uma das cinco maiores causas de morte entre jovens brasileiros.
A tradução do poema de Borges é de Régis Bonvicino.