Qualquer coisa que se escreva a respeito de Mário Faustino, com exceção dos ensaios de Benedito Nunes, ficará sempre aquém de seu trabalho. Nunes afirma que Faustino “foi um dos mais importantes e ativos poetas da geração literária a partir de 1945”. Modéstia! . Faustino foi, no mínimo, um dos três mais vigorosos e importantes poetas da segunda metade do século 20, melhor do que quase todos que o sobreviveram e que aí estão, a se repetir, continuamente, até hoje. Estava certo ao registrar, num poema: “… O morto que em mim jaz aqui rejeito”.
A morte precoce, aos 32 anos, em 1962, na queda de um avião, e a publicação de um único livro em vida ( “O Homem e sua hora”, de 1955), apesar do “sucesso de estima” da página “Poesia-Experiência” (Jornal do Brasil, de 1956 a 1958), pode ter retardado, para a desgraça de nossa cultura, a recepção de seu complexo e fecundo labor de autor, crítico, tradutor e verdadeiro pensador. A edição de suas obras completas – em oito volumes – é mais do que oportuna, neste momento ” de agonia, em que se debate a poesia brasileira”, mortificada, desde pelo menos o início dos anos 90, pelos “discursos de permanência” do modernismo, do concretismo, da poesia marginal, do drummondismo, do cabralismo e pela bancarrota da reflexão literária, que se transformou, as mais das vezes, em mero instrumento de propaganda. A atual “agonia” da poesia brasileira, traduzida pela publicação de centenas de livros, que não correspondem a nenhuma demanda real da cultura e ou de leitores, atesta linguagem e pensamento desconectadas com o mundo e seus conflitos e suas contradições, com a necessidade de sua superação, e com a própria idéia da dissolução da arte e de qualquer posibilidade de renovação, imposta, entre outras forças, pela “era do marketing” (1989) .
Mário Faustino tinha um projeto inconformado e “inconformista”, para toda a literatura brasileira, e para si mesmo como poeta e como crítico – neste campo, também um dos maiores, bastando que se leia seus pedagógicos, riquíssimos e atualíssimos ensaios, publicados em “Poesia-experiência” ( Perspectiva, 1976). Quem teria coragem hoje de escrever algo como: ” Há o Sr. Manoel Bandeira. É o poeta “brasileiro”. Isso não tem muita importância, pois no Ocidente os nacionalismos literários estão desaparecendo…”.
Faustino representa, na verdade, uma outra saída de inovação para a poesia brasileira, diversa da proposta pelos concretistas. Saída pouco explorada. Benedito Nunes ensina que Faustino se achava ligado aos concretistas – a quem apoiava – por alguns laços de afinidade, entre eles, a formação intelectual, lastreada pela coincidência dos mesmos poetas tais como Stéphane Mallarmé e Ezra Pound e pelo acordo no que se referia à existência de uma crise: “a linguagem poética atrasara-se em relação ao tempo”. Todavia, ressalta que: “o experimentalismo puro (…) não o seduzia” e que o completo abandono do verso, como estratégia de renovação, não o conquistava. É o próprio Faustino quem melhor pode esclarecer sua “situação” em relação ao concretismo: “Todo a minha obra tende à criação de poemas longos (…). Como minha poesia tende a ser mais comprometida com o presente e com o passado (embora inúmeras experiências muito me interessem e procure também sempre ‘make it new’), tento progredir sem abandonar a tradição poética a preceder-me e procurando revivicá-la e adaptá-la a novas necessidades”. Para que se entenda, Faustino trabalhava a frase – e não apenas a palavra – como um objeto.
É impressionante dar-se conta que um poema como “vida toda linguagem”, de “O Homem e sua Hora” (1955), tenha de fato sido escrito no Brasil: “vida toda linguagem / frase perfeita sempre, talvez verso, / geralmente sem qualquer adjetivo, / coluna sem ornamento, geralmente partida”. A fusão de arte, linguagem e vida, é uma das pedra-de-toques da obra deste piauiense, conterrâneo de Torquato Neto, mais novo mas igualmente inovador. É também impressionante saber que uma peça como “Sinto que o presente mês me assassina” encontrava-se naquele volume: “Sinto que o mês presente me assassina, / As aves atuais nasceram mudas / E o tempo na verdade tem domínio / Sobre os homens nus ao sul de luas curvas…”. Faustino escreveu – certamente – os primeiros poemas homoeróticos assumidos no Brasil. Veja-se trecho do mesmo poema: ” E atrai-me ao despudor da luz esquerda / ao beco da agonia onde me espreita / A morte espacial que me ilumina / (…) / E o temporal ladrão rouba-me as fêmeas / De apóstolos marujos que me arrastam…”.
Há também o aspecto do tradutor pioneiro nesta figura inesgotável. Traduziu, para a sua página “poesia-experiência”, para mostrar a qual tradição se filiava, Horácio, Guido Cavalcanti, Dante, François Villon, Shakespeare, Goethe, Hoelderlin, Keats, Leopardi, Yeats, Rilke, Wallace Stevens etc etc a pautar todo um roteiro de versões que, mais tarde, seria explorado por outros. Dizia Faustino, em sua incrível modéstia, incomum neste “patropi”, onde medíocres se proclamam “os novos “cabrais”, que seu nome havia sido “traçado” por vagalumes e seu perfil formado por “pétalas caídas”, levadas pelo vento. Errou. Acertou, no entanto, quando escreveu em outro poema: “……Lídia, a geração dos homens, folhas, folhas, / Há-de passar na brisa….”.
Régis Bonvicino