Leio e ouço, entre atônito e… risonho, os clichês da mídia brasileira sobre Michael Jackson. Os clichês evidenciam que não há, por aqui, indústria do entretenimento capitalista estruturada e, consequentemente, jornalismo de entretenimento com algum nível. Sou da mesma geração que Jackson. É interessante observar como ele pauta sua própria morte.
Os videoclipes do álbum Thriller (1982) não existiriam sem um documentário do cineasta francês Jean-Luc Godard, que, em 1968, filmou, num longa-metragem, os The Rolling Stones ensaiando a canção “Sympathy for devil” – a película ironizava, profeticamente, as revoluções ideológicas dos anos 1960 (marxismo-leninismo, movimentos de independência de países africanos, a contracultura, o maio de 1968 em Paris). Chama-se One plus one.
Dois anos antes, outro gênio do cinema, o italiano Michelangelo Antonioni (1912-2007), lançava Blow-up, que, entre inúmeros outros aspectos, trouxe a primeira cena de nu frontal feminina do cinema de arte, com a cantora pop e atriz Jane Birkin. Conhecido no Brasil como Depois daquele beijo, a obra inventou o primeiro videoclipe de uma banda de rock: os The Yarbirds interpretavam uma de suas canções no final. Não há clipe mais efetivo do que este. Nem mesmo os trabalhos de Martin Scorsese (um ótimo diretor) para Bad (1997) e John Landis para algumas canções de Thriller – a obra-prima multimídia de Jackson, e o de Spike Lee (ótimo diretor também) para “They don’t really care about us”, gravado em Salvador e no Rio de Janeiro.
É fato que Michael Jackson foi, só ao lado de Quincy Jones, um mestre em sua síntese de rhythm and blues, soul, rock, Frank Sinatra (1915-1998), Hollywood e Fred Astaire (1899-1987), mas não um inventor, como foi outro músico negro, Jimi Hendrix (1942-1970), que, em quatro álbuns, de 1967 a 1970, alterou a música contemporânea (e não apenas a cena rock ou pop) para sempre, trabalhos até hoje insuperáveis. Jackson não tem sequer o refinamento musical de outros gigantes da Motown, como Marvin Gaye, nascido em 1939 e assassinado pelo pai em Los Angeles, em 1984.
O guarda-roupa de Jackson me lembra a capa de Sgt. Pepper’s Lonely Heart Club Band (1967), dos Beatles, na qual a moda das roupas de exército foi lançada, todavia, naquele momento, com algum sentido crítico contra o autoritarismo e a guerra do Vietnã. Sem os Beatles, ele não existiria, igualmente. Sem a Pepperland, do filme Yellow Submarine (1968), no qual os azuis atacam a cidade, o amor, a música e as cores, Michael não seria nada. Neverland – o nome de seu rancho – vem de Pepperland e é uma citação de segunda via de Walt Disney (Peter Pan). Sua vida artística está em Yellow Submarine. Aliás, seu melhor trabalho (Thriller) é inferior, estética e politicamente, aos melhores álbuns dos Beatles, como o The White Album (1968) ou Abbey Road (1969).
Não há trânsito entre elementos da alta cultura para a cultura de massa na obra de Jackson, como havia no trabalho da banda inglesa e de Jimi Hendrix, que fazia jam sessions de música eletrônica, rock, blues etc. Jackson não existiria também sem James Brown (1933-2006) e, sobretudo, sem Mick Jagger: toda a sua performance de palco vem do front man dos Stones, este muito mais afrontoso e inovador do que ele. Não ouso compará-lo com John Coltrane (1926-1967), Thelonious Monk (1917-1982), Miles Davis (1926-1991) e outros gigantes do jazz norte-americano. Não ouso compará-lo a Bob Dylan. Jackson não chega perto de Jim Morrison (1943-1971) e The Doors ou de Janis Joplin (1943-1970). Está longe de um Lou Reed. E a milhões de quilômetros do jovem Elvis Presley (1935-1977). Todavia, Michael quis a grandeza, foi buscar os grandes! Preencheu o último vazio do show business!
Jackson é um produto da cultura rock, na qual se inclui a Motown, em sentido amplo, pois ele não saiu desses limites, o que não subtrai a importância de seus principais trabalhos e tampouco a devoção de seus fãs; mas essa devoção tem um significado nítido: a transformação da mídia (e da crítica musical) em press release da indústria do entretenimento. John Lennon (nascido em 1940) calou-se – em depressão profunda – depois de ser implacavelmente perseguido por Richard Nixon (1913-1994) e pela CIA, em virtude de sua militância política pelos direitos humanos. Foi assassinado em 1980 e, de verdade, sabe-se lá por quem ou se a mando de quem. Jackson tornou-se garoto propaganda de Ronald Reagan (1911-2004), visitando-o na Casa Branca e emprestando seu prestígio ao político conservador, a serviço da impiedosa globalização do capitalismo selvagem, que, hoje, vigora.
Michael já era – como ele mesmo dizia – um veterano dos palcos quando se tornou adolescente. Sua carreira acabou após o sucesso estético e de público de Thriller, aos incríveis 24 anos. Ele representa a infantilização da cultura ou a extinção da cultura pela infantilização. O que mais me fascina nele são seus conflitos, que não ocultou de ninguém. Era um homossexual visivelmente assumido, mas que desejava ter filhos. Encarnou a tentativa de superação da “feiúra” negra, tornando-se um monstro branco. Era fisicamente frágil, embora tivesse performance leonina nos palcos. Não foi atraente, como Jagger em seus anos de juventude, mas “sexy”, uma capa de revista. Não quis, como qualquer um, envelhecer. Fez caridade e não política (ou seja, política de direita). Foi infeliz. Morreu infeliz.
No Brasil, os conflitos dos “astros”, como Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, se encerram tão logo a conta bancária começa a aumentar: transformam-se em burgueses e oligarcas – ao contrário de Michael. Recuso-me a falar de tolices maiores como Ivete Sangalo – o nada do nada. Por curiosidade, espiei a lista dos CDs mais vendidos hoje no Brasil e deparei-me com os padres Fábio de Melo e Marcelo Rossi. Jackson respondeu a alguns duros processos judiciais com altivez. Fez fortuna, faliu. Vendeu 750 milhões de álbuns. Aliás, sozinho, deve ter vendido mais discos do que a soma de todas as vendas da indústria musical brasileira em todos os tempos. Morreu como qualquer um, de um reles infarto do miocárdio, por overdose de si mesmo (ou de uma droga qualquer, o que é comum), no entanto, a indústria vai, uma vez mais, usá-lo para fabricar a maior morte do mundo. Não terá paz nunca.