Régis Bonvicino
A abertura da segunda edição do Festival Literário de Macau (de 10 a 16 de março de 2013) deu-se no edifício do Centro de Ciência, inaugurado em 2010. O Centro, um conjunto de catorze unidades sob a forma de uma espiral ascendente, à beira mar, é do arquiteto sino-americano I.M.Pei, autor, entre outros, da pirâmide do Museu do Louvre, de Paris.
Um debate sobre as perspectivas dos escritores em um mundo globalizado trouxe a fala crítica de Luis Cardoso, do Timor-Leste, que classificou o atual estágio de internacionalização da literatura como mero “fait divers”, fato pitoresco, reafirmando, em contrapartida, sua importância para a vida cultural de cada país. Participaram deste debate e de outras mesas do encontro José Eduardo Agualusa (Angola), Bi Feiyu (China continental), Valter Hugo Mãe (Portugal), e Mauro Munhoz, diretor da Festa Literária de Parati-FLIP, (Brasil). Yao Feng, nascido em 1958 em Beijing, é o melhor poeta de Macau, onde reside.
O encontro reuniu poetas chineses do continente, todos de nível, como Yi Sha, Xi Murong, Li Shaojun, Pan Wei e Huang Lihai. Fiz uma leitura de poemas na mesma longa sessão em que eles atuaram. Li um poema inédito em livro, intitulado “Hong Kong”, entre outros. Outro deles “Azulejo” (Página órfã, 2007), traduzido por Yao Feng para o chinês, que o leu. A leitura ocorreu na Casa do Mandarim. Todos os poetas leram seus textos de pé, perto de uma luz, elétrica, que vinha da varanda. Havia um bom público, inclusive, de falantes do português. Depois do evento, dei várias entrevistas, uma delas em inglês para Helen Liao, do Yangcheng Evening News Group, que elogiou minha camiseta chinesa azul-marinho e dourada, dizendo-me que ela trazia o caracteres da “boa sorte” e a cor ouro, que, antes, era exclusiva dos imperadores.
Um pouco sobre Macau
Macau é, desde 1999, uma região administrativa especial da China, sob gestão conjunta, em termos jurídicos, de Beijing e de Lisboa até 2049 e sob gestão chinesa na prática. Os principais administradores são nomeados por Beijing. Embora Macau tenha sido colônia de Portugal por mais de quatrocentos anos, a língua portuguesa é hoje uma realidade meramente institucional da administração, das placas oficiais, uma reminiscência da colonização estampada nos nomes das ruas, travessas e becos e nos letreiros de muitas lojas. Há, no máximo, 8 mil de seus falantes e, entre eles, poucos chineses, em uma população de 600 mil habitantes.
Contraponto aos cassinos
O Festival, dirigido pelo jornalista português Ricardo Pinto, constitui-se, na verdade, em uma tentativa de criar uma literatura macaense de língua portuguesa, e de ser, ao mesmo tempo, um contraponto ao perfil comercial da cidade, que recebe, segundo dados oficiais, 28 milhões de turistas por ano, vindos, sobretudo, da China continental. Os cassinos de Macau são os maiores do mundo, superando os de Las Vegas, nos Estados Unidos, em termos de faturamento. No hotel, onde me hospedei, havia um deles, aberto 24 horas por dia. Metade dos frequentadores é composta por jovens. Para os jovens chineses, ir a um cassino equivale a ir um grande show de rock.
O Festival foi pensado para que houvesse articulação entre ele e a vida local e, por isso, realizou-se uma feira de livros e também palestras em escolas. Um dos locais mais importantes da cidade é a Livraria Portuguesa, de rua, sob administração do próprio Ricardo Pinto. Nela, comprei o volume Maquista chapado, um vocabulário
Camões e Pessanha
A lenda repete que Luís Vaz de Camões (1524-1580) escreveu, em Macau, cantos de Os Lusíadas. Em um deles, Camões anota a existência da Grande Muralha da China, antes mesmo dos mapas de cartografia. Em outro, ele descreve o comércio da Nau do Trato, prata fina e especiaria, de Macau. Visitei o Jardim dos Pombos Brancos, no centro, próximo às ruínas da Igreja de São Paulo, onde ele residiu, segundo essa mesma lenda, em uma gruta. Na gruta, há hoje uma estátua do autor de Os Lusíadas. Diante de sua estátua, percebe-se a importância simbólica absoluta de Macau para a língua. Fui também ao Cemitério de São Miguel visitar o túmulo de outro grande poeta, Camilo Pessanha (1867-1926).
Pessanha foi juiz de Direito em Macau, onde escreveu Clepsidra, publicado em 1920, e onde morreu. Sua casa não existe mais. No local encontra-se hoje um dos prédios do banco HSBC, no Leal Senado, praça central da cidade. Se a visita à estátua de Camões remete ao nascimento fabuloso da língua, a visita à campa de Pessanha registra seu declínio: “Floriram por engano as rosas bravas/ No Inverno…”. O português existe quase por engano nesta península.
Reminiscência chinesa
O Jardim de Lou Lim Leoc é o único jardim em estilo Suzhou, estilo clássico. Imita a natureza (água, terra, fogo e ar). Suas pedras sofrem o desgaste do tempo e adquirem aspectos escultóricos fabulares. Há lagos com carpas e flores de lótus. Há uma única trilha, em forma de serpente, por onde se caminha, porque os “maus espíritos se deslocam em linha reta”. Ele é a maior reminiscência tipicamente chinesa em Macau. O Festival Literário tenta tornar o português uma língua viva de novo, para que ela, ao contrário deste Jardim, não permaneça na condição de mera recordação, bela, mas decorativa e isolada.