Régis Bonvicino | 05 set 2017 | Cultura
- Você disse que conviveu na juventude com ele. Poderia dar mais detalhes desse convívio, em que contexto e mais ou menos em que época?
Régis Bonvicino: Eu conheci pessoalmente Walter Franco em 1974, no Teatro de Arena, na Rua Teodoro Bayma, onde ele fez o show “A Sagrada Desordem do Espírito”, cantando e tocando violão sozinho num palco bem pequeno, amparado nas mixagens ao vivo do grande produtor Penninha Schmidt. Em 1972, quando ele apresentou “Cabeça” – muito mais que uma canção – no 7º Festival Internacional da Canção, organizado pela TV Globo, eu começava a prestar um pouco de atenção em mpb, porque antes eu só ouvia rock. Meus ídolos então eram Jimi Hendrix, John Lennon, os Stones, Bob Dylan, os Beatles do White Album, de Abbey Road. E tantos outros. Eu assisti aos dois programas de tevê “Divino, Maravilhoso”, de Caetano Veloso, mas não entendia direito, era complexo para um jovem de 13, 14 anos. Houve só dois programas. O rock entrava mais fácil e entrava no vazio deixado por Caetano e Gil posteriormente exilados. Walter Franco, embora original, trazia um traço claro de John Lennon, do primeiro álbum solo de John Lennon, da canção “God” (“The dream is over”). Um traço de rock. Isso me fez gostar dele. Como eu começava também a me interessar por poesia, prestei atenção nas letras de LP Ou não, muito mais do que letras, muito menos também, em razão de seu minimalismo lancinante, letras bastante incomuns, que remetiam à censura vigente. Há uns poucos anos eu reouvi esse disco e percebi coisas que eu não notava nele, apesar de óbvias. O disco é um retrato duro, fiel, talvez o melhor retrato, dos efeitos da repressão e da tortura do DOPS, da OBAN, da tortura física em si de Sergio Paranhos Fleury. Os gritos, os sons estranhos, os sons sufocados, o desespero, o intimismo, os agudos, as litanias, o jogo de silêncio e som não eram vazios, sem pertinência. Então, Walter Franco passou a ser um interlocutor, um amigo, um amigo letrado, que tinha vindo da ECA-USP, do teatro. E ele acreditou em mim como poeta, o que era generosidade dele. Não me lembro com que frequência, mas nos encontrávamos o suficiente para sermos amigos (ele me apoiou muito em 1979 quando minha mãe morreu, por exemplo). Logo em seguida ao disco Ou não, de 1973, saiu o melhor livro de Paulo Leminski, Catatau, em 1975. Eu menciono Leminski porque ele, depois de escrever um romance não realista, de primeira linha, começou a migrar para o mundo pop. E eu discordava disso. Leminski e eu fomos intensamente amigos. Sua migração para o mundo pop e da mpb, me fez decidir que eu não queria ser “letrista” e eu queria marcar as diferenças entre letras e poemas com palavras – uma distinção muito difícil de ser feita na época, na qual havia uma hegemonia da mpb, da “oralidade”, da “visualidade”, uma letra de Caetano era “o poema”, bastava. Eu digo isto para explicar que Walter Franco foi indiretamente pressionado pelas gravadoras talvez a fazer essa migração: o disco Ou não é uma obra ímpar, de força inédita, única, é mais do que mpb, o que é raro. O LP Revolver foi uma transição, ainda com muito peso, para uma espécie de mercado, que se afirmava por aqui: os músicos tinham que viver de música. Walter Franco era um espírito muito livre para alcançar um público de escala. Ele tinha, por um lado, que lidar com o mercado e, por outro, com o prestígio de Caetano e Gil como “experimentalistas” naquele momento. A partir de meados dos anos 1970, a mpb mais experimental se tornou meio hedonista, no eixo Rio-Salvador. Meio mística – quem sabe – em Walter Franco. Muito pop com Rita Lee. E muito pop de um modo geral, exceto para os que vieram da Bossa Nova, como Tom Jobim. Elis e Tom, LP de 1974, é um disco espetacular. João Gilberto transcendia também tudo. Chico Buarque, com seu samba-canção estilizado e sua luta explícita contra os militares, está fora igualmente deste mundo pop. Walter Franco se lançou como compositor, um compositor maior, numa época de compositores maiores em seu pico. Digo isto sem entender quase nada de mpb. A genialidade de seus dois primeiros trabalhos atraiu “muita concorrência”. Eu enxergava, sem saber se estava certo, um pouco de João Gilberto e de Mutantes em Walter Franco e até o Caetano do disco branco (1969), mixado por Rogério Duprat. Mas não exatamente as sonoridades do tropicalismo e ou de música concreta pura. Mas meu disco de cabeceira, paradoxal e contraditoriamente – era pop, era o Exile On Main Street, dos Stones. Eu tinha dificuldade de entender mpb. Walter Franco me aproximou um pouco dela.
- Como foram compostas “Até breve” e “Corpo luminoso”? Eram poemas seus que foram musicados por Walter ou a criação se deu de outra forma?
Régis Bonvicino: Eu escrevi esses textos que menciona para Walter Franco como letras, a partir de nossos papos, pensando no Walter Franco daquele momento. Essas são as duas únicas letras que eu escrevi e representam mais ele do que eu. Itamar Assumpção musicou um poema de minha autoria (Não há saídas/só ruas, viadutos/ avenidas, de 1980). E eu acho que eu só escrevi essas duas letras pelo grande afeto que sentia por Walter Franco. Eu não sabia escrever letras. Lemisnki se atirava no mundo da mpb, da indistinção entre letra e poema: eu achava que isto já era o mainstream e procurava, aos trancos e barrancos, um caminho singular, só meu, no campo da poesia escrita; eu era um cara “distópico”, idiossincrático, não vivi “o sonho”. Os anos 1970 foram confusos: não tinham a força dos anos 1960 mas apenas a persistência da contracultura, já meio diluída, e aqui seguia uma ditadura; tudo muito confuso, tudo já muito “dado”, “decidido”. Eu acho que entrei em fuga da mpb no começo dos anos 1980. E daí perdi – ideologicamente – contato com esse universo; quando eu mantinha contato, não me sentia à vontade. Me interessava mais o confronto proposto, em uma época, pela mpb do que a mpb em si. Talvez a contracultura – como disse – não tenha me marcado tanto quanto marcou Walter Franco ou Leminski, ambos dez anos mais velhos do que eu ou mais. Há uma história curiosa, que aproxima Walter Franco de Caetano Veloso. Walter ouviu, por meio de uma fita que eu lhe mostrei, a canção “Verdura”, de Leminski, E demorou para gravá-la, embora quisesse gravá-la. E então Caetano me perguntou, um dia, não me recordo a data, se “Walter iria mesmo gravá-la”. E eu disse que não sabia. E então Caetano gravou-a. Cid Franco, pai de Walter, era amigo de um tio meu, o também deputado socialista cassado Germinal Feijó, que havia sido amigo de Oswald de Andrade, a quem Oswald dedicou um poema, “O glorioso destino do café”. Germinal foi um dos mestres políticos de Antonio Candido, que se refere a ele com muito respeito. Então, essa linhagem política nos aproximava: Cid e Germinal
- Em artigo da Sibila no qual criticava certa antologia do “melhor da MPB” dos últimos 100 anos feita pela revista Bravo!, você defendia a inclusão de “Cabeça”. Segundo sua visão, qual o lugar ocupado por Walter Franco na música popular brasileira?
Régis Bonvicino: Hoje, eu incluiria o disco Ou não inteiro, como incluí, intitulando-o de “Cabeça”, e Revolver como trabalhos fundamentais, entre os melhores. Walter Franco estava além de seu tempo. A mpb acabou, para mim, faz uns 25 anos ou mais: se eu ouvia, ouvia sem grande interesse, achava tudo repetitivo, estendido demais. Ocupando o lugar da música erudita, suprimindo-a. Acho que a morte de Elis Regina em 1982 foi um prenúncio desse fim. Eu acompanhei Walter até Respire Fundo (1978) e Vela Aberta (1980). Depois, eu já estava – como mencionei – muito indisposto com mpb e variantes. Defeito meu! Toda a história da mpb foi e é muito construída pelos personagens hegemônicos, como qualquer história. Ela precisa ou pode ser reescrita, revista, por historiadores e críticos, o que talvez seja difícil. Mas necessário. E então, Walter Franco ocupará, como talvez já ocupe, um lugar de destaque, como uma figura ímpar, erudita em Ou não, inventiva, que não se deduziu de modelos fáceis em seus trabalhos centrais. Uma figura independente.
Entrevista concedida a Joca Reiners Terron em maio de 2017
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