“Serão videntes demais ninguém?”, indagava o poeta argentino Oliverio Girondo, em um dos fragmentos de “En la Masmédula” (anos de 1950). Vem-me à tona tal pergunta diante de um livro de, na verdade, poetas-videntes como este “Poesia Russa Moderna”, que oferece ao leitor brasileiro, em sua sexta edição, ampliada, peças não só fundamentais mas fundantes da literatura do século 20, produzidas por Aleksander Blok, Andréi Biéli, David Burliuk, Vielimir Khlébnikov, Aleksiéi Krutchônik, Ana Akhmátova, Boris Pasternak, Óssip Maldelstan, Marina Tzvietáieva, Vladímir Maiakóvski, Serguéi Iessinênin, Ievguêni Ievtuchenko, Andréi Vozniessiênski , Guenádi Aigui e alguns outros.
Nesta simples lista, estão arrolados os criadores do futurismo russo – única vanguarda que se encarnou na história, mais precisamente na revolução soviética de 1917, e que dialogou com poetas de todas as nacionalidades – ao lado de vozes, que, hoje, retrospectivamente, podemos designar de, quase, “pós-soviéticas” como as de Ievtuchenko, Vozniessiênski e Aigui. Nesta seleta, está, também, incluido, nada mais nada menos do que Khlébnikov, considerado por intelectuais como Roman Jackobson e Marjorie Perloff como um dos maiores poetas do século que se findou. Portanto, escreve-se sobre um trabalho, com refinadas traduções de Augusto de Campos, Boris Schnaiderman e Haroldo de Campos – os três exímios tradutores, que, enquanto existir a literatura brasileira, existirá, fecundo – como um verdadeiro marco.
Um dos aspectos que chama a atenção é o de como os poemas mais engajados perderam, a partir dos anos de 1990, um tanto de seu sentido. Leia-se “Os doze”, de Blok: “… Nossos moços largam casa / Pelo Exército Vermelho. (…) / Nossos moços largam brasa! // (…) // Burguês treme de terror! / Poremos fogo na terra…”. Perderam sua “validade” e se tornaram históricos, todavia, falam a respeito da pobreza do presente, unívoco, sem perspectivas de solidariedade. O curioso é encontrar, na própria antologia, peças que fazem a crítica desta poesia mais soviética e, ao mesmo tempo, do capitalismo norte-americano ora mundialmente vigente como nos fortíssimos poemas do ainda vivo Andréi Voniessiênski. Leia-se em “Noturno do Aeroporto de Nova Iorque” versos belos e contudentes como : “… Brooklyn – cabeça dura, demônio de pedra. // O aeroporto é o único / monumento da era.”. Não há como não relacioná-los aos eventos de 11 de setembro de 2001. É de autoria do mesmo Voniessiênski o “Na América”, escrito em 1964 e reatualizado pelo presente: “Na América recendendo a treva, / amoníaco e camélia, / (…) / / Olho sangrando – feito um semáforo. / Os albergues têm escutas. / Microfones no cano das duchas…”.
Sob a ótica “pós-soviética”, há um poema de Ievtuchenko (que está vivo) intitulado “Verlaine”, que trata do destino dos (melhores) poetas nas sociedades modernas, que, impiedosamente, os assassinam, com base em manobras mesquinhas: “… Matou-o de um lento estertor / tudo isto, senhores. / Matou-o tudo que o agredia / com zombarias por trás de uma esquina…”. Aqui, nesta peça, foca-se a pessoa, revelando-se um deslocamento dos temas, com a desaceleração das utopias de 1917, entre outras questões. Ainda deste ponto de vista, há a poesia de Aigui, feita mais de silêncios e abstrações e menos de afirmações. A poesia de Aigui reflete, para mim, este período de transição entre o socialismo e o pós-socialismo: “Anuncia-se o título tranqüilamente e a meia voz. / Depois de uma pausa prolongada: …”. Ele parece, propositadamente, não ter o que dizer, ao contrário de Maiakóvski, que tinha, digamos, coisas a dizer, até em excesso. É interessante repensar o “Hino ao Juiz”, de Maiakóvski, em confronto com a figura contemporânea de um Baltazar Garçon, que, como é notório, investiga e persegue ditadores, como Salvador Allende, e opera pela e com a ordem democrática. Leia-se: “… boiões de lata, os olhos dos juízes / São faíscas num monte de lixo…”. Sobrevive melhor o Maiakóvski de “Balalaica” ou de, apesar do título, “A Plenos Pulmões”: “… Mas eu / me dominava / entretanto / e pisava/ a garganta do meu canto” – lição abandonada pelos poetas brasileiros, de um modo geral – rouxinóis satisfeitos!.
O já mencionado Aigui, autor de belíssimos versos como “… Jerusa / Rosa chamejante do Brasil / Linhagem-de-flor….”, é a presença, em alguns aspectos, rediviva do maior de todos os poetas incluidos no volume – o que mais diz para o futuro: Vielimir Khlébnikov. Desta antologia brasileira constam (pioneiramente) peças universais como “Bobeóbi cantar de lábios” ou “Encantação pelo riso”. Marjorie Perloff, em seu recentíssimo “21st-Century Modernism” (Blackwell, 2001), vale-se de duas traduções existentes em inglês, a da Paul Schimit e a de Gary Kern, para analisar o poema, argumentando que nenhuma das duas alcança a força do original. Creio que, para o português, a de Haroldo de Campos é bastante feliz ao manter a sílaba “ri” em todas as palavras do texto: “…hilariando, riando, / Ride, ridentes, / Derride, derridentes”. Neste mesmo ensaio, Perloff afirma que o personalismo e o racionalismo estreito, que dominaram a maior parte da poesia mainstream do século 20, podem encontrar uma via de superação e inspiração no zaum – além da mente e da razão visíveis — de Khlébnikov. Só isto bastaria para tornar este “Poesia Russa Moderna” um livro ainda mais obrigatório, para além de quaisquer preconceitos.
Régis Bonvicino