A editora Hedra acaba de publicar o livro de poesias Estado Crítico, de Régis Bonvicino. Com seus travellings vertiginosos, versos são criados a partir do seu próprio desencanto em ser poesia. A poesia como um fracasso exemplar.
A poesia de Régis é crítica de si mesma e do mundo em que habita. Destroço entre os destroços do mundo. “Tudo existe, nada tem valor”. Que poesia teria? Imagens como ready-mades. Cenas encontradas e transformadas – entre-re-cortadas – em versos-colagens. O poeta flâneur aturde a realidade, o vácuo social, levando a poesia ao estado crítico, ex officio, como única forma de impedir a sua cristalização como um entre outros “bens culturais” do mundo decadente.
Ao descrer da poesia confessional, Régis suprime a literatura do eu e avança na literatura do é. Para isso se faz poeta da tradição que cria a partir da cidade e da atmosfera urbana. Como diz Alcir Pécora na orelha do livro, Régis opera um movimento de “anotação crua dos eventos, de enumeração da atividade caótica das coisas tais como se oferecem ao voyeur, que mantém o olhar firme e interessado – mas nunca partidário – diante das cenas oferecidas a sua vista, sejam elas banais ou escabrosas”.
Da tradição que vem de Baudelaire, passando por Mallarmé, Rilke, Valéry, Eliot e Pound, a poesia de Bonvicino se faz autocrítica e subverte, via linguagem, a relação entre o homem e o mundo. A modernidade produz a consciência poética de que se a realidade torna-se estranha e dentro dela move-se o homem estranho a si mesmo, a linguagem, consciente da sua impossibilidade de comunhão com o mundo, deve viver, por si mesma, em estado crítico (ou de estranhamento).
A criação artística, a poesia mais que todas as outras artes, torna-se estranha ao mundo, exigência mínima para produzir o colapso necessário do eu. Aquele eu que indagava por si mesmo, como em Rilke, e que não recebe resposta, sabe que só lhe resta, enquanto linguagem, aceitar o limite do dizível. A poesia aborta a possibilidade de comunicação. Só lhe resta o estado crítico, que no caso de Régis é, como disse Charles Bernstein, “descargas distópicas a infiltrar-se no próprio tecido prosódico”.
Como numa colagem de Schwitters, Bonvicino opera sua poesia com os restos do mundo industrial, recortes e objetos desovados no lixo da cidade, que são recuperados em versos que são também “impasses” da linguagem. Também o mundo é feito de colagens re-insignificantes, como no poema “Um performer”, onde o “xamã talmude de Nova Iorque (…)/ como sempre, o que diz/ não diz nada”.
Exilados da terra, poetas sentem-se impotentes em desvendar o real, talvez até possam iluminar a paisagem, mas a partir do nada. Só deixam ao eu lírico a possibilidade de existir sem norte. Melhor que não exista então. O homem em face do nada. A terra estéril gera poesia estéril. Nenhum deslumbramento da linguagem, senão anotar, parafraseando o poema “Frase”, que a poesia “é mais um cadáver/ não cabe na frase, acaba”.
A poesia se livrou do discurso, já que não existe possibilidade lógica, inteligível, de compreender o homem e seu mundo. A fragmentação do mundo se reflete na fragmentação do discurso. Na poesia de Bonvicino, somam-se imagens que vão da grade de respiro do metrô, antenas de prédios, semáforos, copos furados de plástico ao cheiro de canela. Fazendo-se sinestésico, o poeta tromba com o mundo: calçadas de cemitério, sacos plásticos, alarme de carro, avenidas alagadas, barraca de camping, etc. Crítico, o poeta percebe que corpos são como marcas de roupa, almas são como mercadoria e a existência um péssimo tropeço.
Desses encontros nascem os versos oblíquos no qual o leitor passeia sem rumo. Encontros inusitados, esquinas perigosas, calçadas estranhas, vitrines edulcoradas. Universos habitados por mendigos, turistas, passantes, imagens de ídolos de rock e revolução, vedetes do mundo atual que “despem/ o último Ghesquière”. Objetos, ruídos, cheiros, transeuntes, perdidos sem a devida redenção de si mesmos, nem mesmo a da poesia, que não glorifica a decadência, não a estetiza, mas, ao contrário, faz a fina flor da arte cheirar a gás e urina.
“Tortura”
Poesia é atraso de vida
é o maior desserviço
é masoquismo
é a cela vaga de um presídio
no máximo um dever de escola
Camões
é um belo de um castigo
Um livro de poemas
é papel jogado no lixo
Basta um verso de Pessoa,
para citar num artigo,
um verso de Vinícius,
útil para dizer no ouvido,
não chega aos pés
de uma letra realista de Chico
A verdadeira poesia
é um show de um ex-beatle
A poesia
dá nojo em barata
é suplicio
Para ir além: