Carlito Azevedo, poeta
JB, 30 de julho de 2006
Refrescando a memória: em novembro de 1979 terminava o bipartidarismo no Brasil, sistema que, nos anos da ditadura militar, reduzia as opções políticas oficiais a MDB e Arena. Pouco tempo depois, mais exatamente em fevereiro de 1980, amadurecido nas greves operárias de 1978, era fundado o Partido dos Trabalhadores.
É muito provável que ali, entre 1979 e 1980, tenha começado um período histórico que se encerra neste 2005, quando, depois de chegar ao poder pela via democrática, o PT se debate em uma crise que parece confirmar as teses mais desencantadas, segundo as quais, neste país, nada pode dar certo.
Literariamente falando, eu me pergunto se esses dois marcos da história política coincidem de algum modo com o início e o fim de um ciclo na história recente da poesia brasileira.
A inspiração dessa dúvida nasceu da leitura do excelente prefácio escrito por Abel Barros Baptista e Osvaldo M. Silvestre para a antologia de poesia modernista brasileira Seria uma rima, não seria uma solução, por eles também organizada. Nesse livro, lançado pela editora portuguesa Cotovia, Abel e Osvaldo limitam suas escolhas ao material poético produzido entre 1922 e 1930, ressaltando que em 1922, na área política, a Semana de Arte Moderna coincidia com as comemorações do primeiro centenário da Independência e com a fundação do Partido Comunista Brasileiro, e que em 1930 eclodiria a revolução que levou Getúlio Vargas ao poder. Os prefaciadores, aliás, reproduzem essas esclarecedoras palavras de Getúlio, do livro O governo trabalhista do Brasil: ”As forças coletivas que provocaram o movimento revolucionário do modernismo na literatura brasileira, que se iniciou com a Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, foram as mesmas que precipitaram, no campo social e político, a Revolução de 30”.
Vejamos como a poesia brasileira se desenvolveu neste período histórico entre 1979-1980 e 2005. Em 1979, alguns poetas importantes encerravam ciclos em suas obras. Como Drummond, que lançava então o terceiro e último volume da série Boitempo, a partir do qual daria um descanso para a mão memorialista, e desenvolveria outros questionamentos em livros como A paixão medida (1980), Corpo (1984) e Amar se aprende amando (1985), além dos póstumos O amor natural (1992) e Farewell (1996). Na extraordinária série ”Canções de alinhavo”, do livro de 84, e, sem favor algum, um dos grandes poemas de Drummond em qualquer época, o poeta anota: ”Stéphane Mallarmé esgotou a taça do incognoscível/ para nós só restou o cotidiano que avilta, deprime”.
Em 1979, Augusto de Campos reunia sua obra poética em VIVA VAIA, que repercutiria profundamente nos anos seguintes. Essa reunião parece fechar também um ciclo na poesia do autor, como sugerem o último poema do livro ”Tudo está dito” e o primeiro do livro seguinte, o álbum serigráfico Expoemas, ”Limite”. ”Póstudo”, talvez o poema mais polêmico da década, também tem relação com essa possível mudança de rumos.
E se alguns poetas encerravam em 1979 ciclos importantes em suas obras, outros iniciavam ou reiniciavam suas trajetórias poéticas. Poetas fundamentais que transformariam sensivelmente nossa compreensão dos ”limites” da lírica do período. Como Ana Cristina César, que estrearia com dois livros, Cenas de abril e Correspondência completa, e Sebastião Uchoa Leite, que após um silêncio de 19 anos desde sua estréia, em 1960, com Dez sonetos sem matéria, voltaria à cena com Antilogia. Este pequeno e precioso livro, apesar de simular um esquife, zombar das poéticas vitalistas e conter um famoso auto-epitáfio (”aqui jaz/ para o seu/ deleite/ sebastião/ uchoa/ leite”), representou um verdadeiro renascimento para Uchoa Leite que, desde então, passou a publicar com razoável regularidade, como o provam os seis livros que lançou até sua morte, em 2003.
Outro fato relevante e pioneiro de 1979 foi a publicação de À mão livre, de Armando Freitas Filho, por uma grande editora, a Nova Fronteira. Embora o livro não representasse uma mudança de rumos tão radical em sua obra (pelo menos não como aquela que o poeta operaria, em 1985, com o ótimo 3×4 ), a publicação antecipava e anunciava um dado característico da década seguinte: a absorção, por parte de editoras comerciais, de certa produção poética nova que, até então, se via muito dependente do precaríssimo sistema de edição do autor. Era o fim definitivo de um dos principais encantos da poesia marginal.
Depois, já em 1980, seria a vez de Ferreira Gullar reunir sua obra no volume Toda poesia, com tremenda repercussão pública e definitiva canonização do autor. Neste ano seria publicado ainda o falsamente memorialista A escola das facas, de João Cabral. Os estreantes do período iam se acumulando: Age de Carvalho, Ronaldo Brito, Lu Menezes, Paulo Henriques Britto, João Moura Jr., e seus livros demonstravam que a melhor poesia de então transcendia o ”bipartidarismo” artificial das duas forças hegemônicas dos 70: concretos e marginais.
”Bipartidarismo” que também seria derrubado pelo desenvolvimento absolutamente original do trabalho de poetas como Duda Machado, Júlio Castañon Guimarães e Régis Bonvicino. Autores que estrearam nos anos 70 mais ou menos próximos do concretismo, e que atingiram a partir dos 80 uma dicção madura pessoal e intransferível.
A abertura política brasileira coincide com aquilo que Haroldo de Campos chamou de ”momento pós-utópico”. E a utopia possível do momento pós-utópico dos 80-90 circulou em livros de força incontestável como Lago, montanha, de Chico Alvim (81); Caprichos & relaxos, de Paulo Leminski (81); A teus pés, de Ana Cristina César (82); A educação dos cinco sentidos, de Haroldo de Campos (85); Barulhos, de Ferreira Gullar (86); De cor, de Armando Freitas Filho (88); Trevo, de Orides Fontela (88); Quarta do singular, de Ronaldo Brito (89); O desejo e o deserto, de Eudoro Augusto (89); 33 poemas, de Régis Bonvicino (90); Prosas seguidas de odes mínimas, de José Paulo Paes (92); A ficção-vida, de Sebastião Uchoa Leite (93); Trovar claro, de Paulo Henriques Britto (97); Não se diz, de Marcos Siscar (98); Bicho do mato, de Dora Ribeiro (00), e tantos outros, fundamentais para quem quiser compreender a poesia contemporânea. A enumeração pode parecer um pouco excessiva, mas não representa nem uma quinta parte da produção poética do período que, contudo, já foi chamado de ”décadas perdidas” para a poesia.
Uma das teses da antologia de Abel e Osvaldo, baseada na opinião de Merquior de que, depois do modernismo, ”nada mais alterou verticalmente a poesia brasileira”, é a de que Cabral, concretos e marginais podem ser vistos como novos ”momentos na seqüência modernista”. É como se ”o idioma modernista se tivesse transformado numa linguagem prévia a toda a tentativa de fazer poesia”, dizem os antologistas.
Recentemente podem ser detectadas tentativas de driblar esse idioma modernista. Algumas tentativas são mais desanimadoras, como as que escapam da questão defendendo uma ”intemporalidade da linguagem poética”, segundo a qual não há nenhuma necessidade de se escrever de modo diverso de como o fez, por exemplo, Petrarca. Outras tentativas de criação de um novo idioma poético (essa grande e terrível ”aporia do pós-moderno”) parecem mais frutíferas, e serão tema de uma próxima coluna, em que analisaremos os principais lançamentos poéticos de 2004-2005.